O Olhar da Cidade Destruída

Entre o Despertar e a Procura, o Eco da Destruição e do Luto

 

Giovanni despertou com a mente ainda embotada pela dor, a claridade do quarto se insinuando por entre as frestas de madeira. Sua cabeça estava pesada, o corpo cansado, mas havia uma sensação de familiaridade ali, algo que o fazia se sentir seguro. Lentamente, seus olhos se abriram, e o primeiro vislumbre que teve foi de Kamaria, recostada na parede ao seu lado, dormindo. Seus longos cabelos brancos e os contornos delicados de seu rosto o faziam parecer como se fosse uma visão.

 

A luz que entrava pela janela tocava a pele de Kamaria com suavidade, criando um contraste sereno com as sombras ao seu redor. Giovanni ficou ali, imóvel, observando-a, sentindo um calor inexplicável no peito. Ela parecia uma figura de outro mundo, uma mistura de força e fragilidade que ele mal conseguia compreender. Talvez fosse o resquício da febre ou o fato de ter lutado contra a morte nas últimas semanas, mas a presença dela era como uma âncora que o mantinha preso à vida.

 

Ele tentou se mexer, mas uma dor aguda atravessou seu corpo, lembrando-o de seus ferimentos. O estômago contraiu, e ele fechou os olhos por um momento, tentando controlar a sensação de fraqueza. Quando os abriu novamente, Kamaria ainda estava lá, sua respiração tranquila, o corpo delicadamente inclinado, como se guardasse algum segredo que ele nunca seria capaz de decifrar.

 

Giovanni suspirou baixinho, temendo acordá-la. Naquele instante, ela era sua salvadora, e o alívio que sentia por estar vivo se misturava com uma gratidão silenciosa que ele não sabia como expressar. O cheiro suave de óleo de lavanda pairava no ar, provavelmente do tratamento que ela havia aplicado em seus ferimentos. Ele sorriu, um sorriso fraco, mas sincero.

 

Ela cuidou dele, enquanto ele mal conseguia manter os olhos abertos, enquanto seu corpo se entregava ao cansaço e à dor.

 

Os olhos de Giovanni pesaram de novo. Ele tentou lutar contra o sono, mas o conforto daquele momento o envolveu, e ele afundou de volta nas sombras do descanso, com a visão de Kamaria como seu último pensamento consciente.

 

***

 

Quando Giovanni despertou novamente, o quarto estava vazio. Kamaria já não estava ali. O espaço parecia diferente sem sua presença, mas o cheiro de lavanda persistia, o que trouxe de volta o calor que ele havia sentido antes. Ele se sentou devagar, notando que seu corpo, embora ainda dolorido, estava consideravelmente melhor. As ataduras envolviam seu tronco e braço com precisão, e as mãos de Kamaria haviam feito um trabalho delicado e cuidadoso.

 

"Ela... partiu já", murmurou para si mesmo, seus olhos percorrendo o quarto em busca de algum sinal dela. Mas tudo o que encontrou foi o eco de sua presença nos objetos deixados para trás — uma tigela de água limpa, compressas cuidadosamente dobradas e o leve rastro de seu perfume no ar.

 

Giovanni se forçou a ficar de pé. As pernas, por mais fracas que estivessem, ainda eram suas, e ele sabia que precisaria se mexer. Já havia descansado o suficiente, e algo dentro dele o impelia a sair. Do lado de fora, o som distante de vozes e passos apressados o alertou para o fato de que algo acontecia na cidade. Curioso e inquieto, ele vestiu o que pôde e, com dificuldade, saiu pela porta de madeira para encarar o mundo lá fora.

 

***

 

O ar estava pesado, carregado de uma tensão palpável, como se a própria terra tivesse sofrido com o recente caos. Ao descer a pequena colina onde a casa de Kamaria ficava, Giovanni foi recebido por uma visão de destruição. **Porto Cantante**, antes vibrante e cheia de vida, agora se assemelhava a uma sombra de seu antigo esplendor. O cheiro de fumaça e de maresia misturava-se, criando uma atmosfera pesada e agridoce.

 

Giovanni observou em silêncio as ruínas de casas, os barcos tombados sobre as margens do rio, e as figuras silenciosas dos cidadãos se movendo como fantasmas entre os escombros. A cada passo que dava, mais ciente ficava da gravidade do que havia acontecido enquanto ele lutava por sua vida naquela cama. O desespero das pessoas, a dor de suas perdas, estava estampada em cada rosto, em cada gesto hesitante.

 

Mas, mais do que tudo, era o som que o impactava — o silêncio carregado, entrecortado pelo choro contido e murmúrios de luto. Giovanni sentiu algo se mexer dentro dele, uma inquietação misturada com culpa. **Ele estava vivo, mas quantos não estavam?**

 

Guiado pela curiosidade e por um senso de responsabilidade, Giovanni se aproximou da área central da cidade, onde percebeu uma movimentação maior. À medida que se aproximava, viu um cortejo sombrio, um funeral — e foi então que se lembrou das palavras de Kamaria, das vítimas do ataque ao **Esperança** e da tempestade mortal que havia destruído tantas vidas.

 

A cerimônia, apesar de sua gravidade, possuía uma beleza sutil. Os corpos eram levados sobre liteiras delicadamente adornadas, as flores do rio e os corais brilhavam em meio ao sol poente, trazendo uma estranha paz àquele cenário devastador.

 

No meio da multidão, Giovanni procurava um rosto conhecido, seus olhos constantemente buscando Kamaria. Havia uma necessidade crescente dentro dele de vê-la novamente, de entender por que tudo aquilo estava acontecendo, e talvez de se reconectar com a força que ela lhe havia dado. Contudo, em vez dela, seus olhos caíram sobre outro conhecido — um Innisiano de pele azul como as ondas navegadas pelo Esperança, com uma expressão grave. Teach parecia imerso no momento, observando a procissão com uma intensidade peculiar.

 

Giovanni hesitou por um momento antes de se aproximar. Teach sempre fora uma figura envolta em mistério, mas havia algo de familiar em sua presença que o fazia sentir-se menos perdido naquele momento.

 

"Giovanni!" A voz rouca de Teach o puxou de seus devaneios. "Eu não esperava vê-lo de pé tão cedo. Ainda mais com essa confusão toda."

 

Giovanni sorriu de leve, mas a dor em seu corpo o fazia lembrar de cada batalha que tinha enfrentado. "Ainda estou me recuperando... Mas precisava ver o que estava acontecendo. Kamaria mencionou algo sobre o funeral, mas não a encontrei."

 

Teach franziu o cenho por um breve instante, o olhar dele se tornando mais afiado. "Kamaria... Ah, sim. A jovem Innisiana. Ela estava por aqui, mais cedo. Mas não posso te dizer para onde foi. Esse funeral... é um momento difícil para todos." Teach olhou para o horizonte, pensativo.

Giovanni assentiu, o olhar voltando-se para o cortejo. "E Giovanni... não se envolva demais com o que não pode compreender." As palavras de Teach ficaram no ar, pesadas, misteriosas.

 

Os dois permaneceram em silêncio, observando enquanto o funeral se desenrolava. Giovanni sentia o peso de cada alma perdida, de cada flor que era lançada sobre os corpos. Mas dentro dele, algo começava a se alinhar — ele estava vivo, ele tinha algo pelo que lutar, mesmo que ainda não compreendesse completamente o que.

 

Ele virou-se para Teach, a voz baixa e firme: "Preciso encontrá-la. Mas também... preciso encontrar meu caminho."

Teach observou-o, os olhos fixos como se estivesse analisando cada palavra que Giovanni dizia. "Então vá. E tenha cuidado... Porto Cantante guarda mais segredos do que você imagina."

 

Giovanni o encarou por mais alguns instantes antes de se despedir, os pensamentos voltando para Kamaria, mas também para seu próprio destino. A cidade destruída e o peso do funeral o lembravam que o mundo à sua volta era imprevisível, e cada escolha que fazia o colocava mais perto do desconhecido.

 

O cheiro do óleo de lavanda ainda estava em suas roupas, e isso lhe deu forças para continuar.

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