Desejo Abissal




 


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Nem toda água corre para o mar

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As palavras do Omu ressoavam como ondas quebrando em uma praia deserta, enquanto a lua brilhava no céu dos terrestres, sua luz filtrando-se nas águas do domínio innisiano. Kamaria, a jovem sereiana de pele núbia, ofegava. Suas brânquias se abriam e fechavam ritmicamente, enchendo seus delicados seios com o líquido doce que permeava o ambiente. Aquele ar subaquático era mais familiar para ela do que qualquer outra coisa, mas hoje, parecia sufocante.

Ela estava adornada com um colar intricado de algas marinhas, ornamentado com pedras que capturavam a luz da lua e lançavam reflexos cintilantes sobre a água. O azul profundo dominava sua vestimenta, uma homenagem às águas onde os innisianos prosperavam. Sobre os ombros, um manto feito de escamas iridescentes envolvia seu corpo com uma aura etérea, cada escama pulsando com uma luz suave, quase como se carregasse a energia das profundezas do oceano.

Era uma imagem de poder e beleza que todos no clã admiravam. Mas Kamaria não se sentia poderosa. Não se sentia forte. Naquela noite, a jovem não conseguia se ver como a líder que todos esperavam que ela fosse.

"Que a deusa Innis nos traga fartura neste florescer, e que suas águas transformem toda rocha em areia," saudava o Omu, sua voz reverberando pelas águas. O clã inteiro repetiu a saudação em uma nota monocórdia, a cerimônia de ascensão alcançando seu ápice.

Kamaria observou em silêncio enquanto todos ao redor aplaudiam freneticamente. Havia orgulho nos olhares de cada adulto presente, especialmente de seus pais, Nia e Omu, que estavam posicionados com destaque no centro da multidão. No entanto, seu coração batia descompassado, envolto em uma mistura de ansiedade e melancolia. Seus dreads negros, transformados permanentemente em brancos pela meia lua brilhante na testa, caíam como fios de prata emoldurando seu rosto. O símbolo de sua conexão com Innis, a lua e a magia.

Mas em seus olhos, a nostalgia pairava, buscando respostas que seus pais, com seus sorrisos de orgulho, não podiam lhe oferecer.

Após o término da cerimônia, Omu, Kamaria e Nia se reuniram em uma enseada tranquila, longe dos olhares curiosos. A lua brilhava intensamente acima deles, refletida nas águas, sua luz prateada criando um contraste entre a calma da noite e a tempestade de pensamentos que Kamaria carregava dentro de si.

Omu, com sua pele negra coberta de escamas azuladas e seu corpo imponente que terminava em uma cauda de cavalo-marinho, sorriu para sua filha. "Você brilhou como a lua, Kamaria. Estou orgulhoso de você."

Kamaria ofereceu um sorriso tímido em resposta, mas não conseguia esconder completamente o desconforto. O peso da responsabilidade caía sobre seus ombros com a força das correntes. Ela sabia que o clã depositava grandes expectativas sobre ela. Sabia que seu destino estava traçado muito antes de seu nascimento.

"Com grande poder vem grande responsabilidade," disse Nia, com um olhar sério que contrastava com o orgulho em seu tom de voz. "O futuro do clã repousa sobre seus ombros, filha."

Kamaria baixou os olhos, incapaz de encarar a seriedade de sua mãe. Grande responsabilidade. Aquela frase reverberava em sua mente como um fardo. "E se... eu não estiver pronta para esse futuro?"

Omu franziu a testa, inclinando-se para levantar o queixo da filha. "Você e sua mãe são mais parecidas do que pensa. Ela é uma guerreira, e você, uma feiticeira, mas ambas têm a mesma força. Uma força que você nem mesmo compreende ainda. Você será a salvadora do nosso povo, Kamaria."

"Só que eu não me sinto uma salvadora," respondeu Kamaria, afastando-se um pouco e abraçando a própria cintura, buscando conforto em seus próprios braços. "Tudo o que conheço é esse mar de água doce. Tudo o que conheço é a margem do Innis. Como posso salvar o que eu não entendo?"

"Porque você sabe do que estamos protegendo nosso povo," insistiu Omu, sua voz ganhando uma ponta de impaciência. "Você conhece as histórias dos humanos. Você sabe do que eles são capazes."

"São só histórias," murmurou Kamaria, desviando o olhar.





"Não são apenas histórias!" A voz de Omu cortou o ar como uma lâmina, ecoando pelas águas ao redor deles. Um silêncio pesado pairou entre os três, como se as próprias águas tivessem parado de se mover por um breve momento.

Nia, com sua postura firme e determinada, aproximou-se de Kamaria, colocando uma mão firme no ombro da filha. "Kamaria, entenda, não estamos falando de contos de ninar. O perigo é real. Nós já vimos o que os humanos podem fazer, e se você não estiver disposta a tomar uma posição, nosso clã não sobreviverá."

Kamaria balançou a cabeça, sua expressão séria. "Eu não quero guerra, mamãe. Eu me recuso a sacrificar nossa ética, nossa essência, por uma vingança que só vai trazer mais dor. Vocês falam em declarar guerra, mas isso não vai nos salvar. Só vai nos destruir."

Omu, com os olhos apertados de frustração, estalou a língua. "Você fala como se tivesse escolha. Como se pudéssemos nos dar ao luxo de esperar que eles venham atrás de nós. O que aconteceu com o Akin não foi um acidente, Kamaria."

O nome de Akin fez com que uma sombra passasse pelo rosto de Kamaria. Ela sabia o quanto aquela perda tinha impactado seus pais, o clã inteiro. Mas ela nunca o amara. Ele era um noivo prometido por razões políticas, uma aliança, nada mais. No entanto, sua morte abalou a todos ao seu redor de uma forma que ela não podia ignorar.

"Aquilo foi uma tragédia, baba. Mas você sabe tão bem quanto eu que Akin nunca significou para mim o que ele significava para você. Eu não queria que ele morresse, mas ele não era meu destino. Não como vocês pensam."

Omu, furioso, aproximou-se de Kamaria com uma intensidade que a fez recuar. "Você não entende! Não é sobre amor, Kamaria. Akin era um símbolo. Um símbolo de nossa força, de nossa união. Sua morte abalou o clã, enfraqueceu nossa posição. Isso não é sobre sentimento, é sobre sobrevivência."

Kamaria ergueu o queixo, firme em sua posição. "Eu entendo o que ele representava, baba. Mas não vou manchar a memória dele com sangue e vingança. Akin merece mais do que isso."

Omu respirou fundo, sua raiva mal contida. "Você está cega, Kamaria. Seu sentimentalismo não vai mudar a realidade. Precisamos proteger nosso povo. E, se necessário, isso significa lutar."

Nia, até então em silêncio, falou com uma frieza calculada. "Omu está certo, filha. Esta não é uma escolha. É uma necessidade. E você, como nossa líder, deve entender isso."

Kamaria, sentindo-se sufocada por aquelas palavras, balançou a cabeça lentamente. "Não posso compactuar com isso. Não posso sacrificar quem somos."

Omu perdeu a paciência. "Vá para o seu quarto, Kamaria! Você está de castigo. Não vou tolerar mais desafios."

A jovem sereiana, ferida e frustrada, saiu rapidamente, sentindo as lágrimas arderem em seus olhos. Ela não sabia se poderia mudar a mente de seus pais, mas sabia que não podia viver sob aquele peso por mais tempo.

Naquela mesma noite, enquanto o clã dormia e a lua desaparecia por trás das nuvens, Kamaria escapou. Seu coração batia forte enquanto ela se movia com destreza silenciosa pelos corredores da casa. Seus dreads brancos balançavam suavemente, refletindo a luz fraca das estrelas.

Ao alcançar a superfície da água, ela emergiu e respirou profundamente. A transformação foi dolorosa. As escamas começaram a se desfazer, perfurando sua pele como agulhas, e a barbatana bifurcou-se em duas pernas. O sangue escorria, mas Kamaria não vacilou. Cada passo em direção à terra era um passo em direção à liberdade, por mais que doesse.

Ela encontrou um pequeno refúgio na vegetação rala. Sob uma pilha de pedras, descobriu um vestido branco de algodão, já manchado de terra. Vestiu-se rapidamente, o tecido contrastando com sua pele escura e avermelhada pela luz da lua.

Kamaria olhou para o céu, e uma melodia suave começou a escapar de seus lábios. A canção tomou forma, refletindo sua confusão e esperança.

Ó menina das águas, perdida no véu de marfim,
Teus pés não tocam o chão, teus sonhos fogem de mim.
Correntes sussurram segredos que o mar não pode calar,
Mas há muito mais que água em teus olhos a inundar.

A lua te chama distante, seu brilho não é o teu lar,
Menina das águas, quem serás quando o dia acordar?
O mar é vasto e fundo, mas teu coração vai além,
Ó menina das águas, ama o que és, sem ninguém.

Ela cantou para a lua, para as estrelas, para si mesma. Porque agora, em terra firme, estava livre. Mas o peso da escolha ainda pairava sobre seus ombros.








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