RP Colaborativo - Participantes: Kamaria, Giovanni.
O sol já se punha quando um dos marujos começou a gritar:
-Terra a vista! Terra à vista! Ao longe podia se ver um uma faixa de
terra, e um porto. Aquele definitivamente era o meu destino. A terra onde meus
pais passaram a maior parte de suas vidas. Minha missão era encontrar meu pai e
vingar minha mãe, não sabia o que estava me esperando, um novo continente,
novos tipos de pessoas, tudo soava tão assustador quando se parava para pensar.
-Giovanni! Venha cá! – chamou Teach. Olhei para a ponta do navio e lá
estava ele, meu capitão, ele me ajudou muito me dando essa carona até aqui,
precisava agradecê-lo da forma correta. Me apressei e fui ao seu encontro.
-Teach, aquele é o Porto Cantante?
– disse enquanto me debruçava no corrimão lateral do navio.
Ele soltou uma gargalhada. -Sim. Nunca me canso daqui, sempre que volto
tenho a mesma sensação, realmente me sinto em casa. -Acho que você nunca saiu
da sua casa, você é um innisiano, não? O rio Innis inteiro é sua casa. –
Respondi. Ele ajeitou o cinto que carregava um cantil ornamentado. -De certa
forma. Mas o Porto em si é também parte importante da minha vida, foi onde
minha mãe adotiva, Aura, me criou e ensinou tudo que eu sei hoje sobre velejar.
Ele parecia olhar para o porto, mas na verdade os olhos de Teach estavam vendo
muito mais longe, um tempo que não voltaria mais. -Isso é interessante. Pelo
que você me contou, innisianos e humanos não se dão muito bem, por conta de
intrigas passadas. E mesmo assim aqui está você, o único dentre esse bando de
humanos. Ele seguiu em minha direção enquanto passava os dedos pelas cordas do
mastro.
-Os humanos... são criaturas complicadas. Minha mãe dizia que ninguém é
cem por cento bom ou mau. – Seu olhar se concentrou na água. Encostei no navio
e olhei para cima, o preto noturno se misturando com o laranja do pôr do sol.
Guerras. Nunca me imaginei no meio de uma. Na verdade, acho que nunca achei que
precisaria lutar, e agora estou indo direto para o desconhecido, quais
conflitos me aguardavam? -Estranho... – Murmurou Teach. Me virei para ele e
perguntei: -O quê? Aconteceu alguma coisa? -O rio está ficando mais agitado, e
o céu está escurecendo rápido demais, parece até que vai vir uma... tempestade.
Eu estava confuso. -Mas não tem como ser, até agora pouco estava tudo tão calmo,
e nem na viagem toda tivemos uma tempestade dessa.
-Não sei o que é isso, mas tenho
minhas teorias – Disse Teach enquanto se apressava, o barulho da perna de pau
batia no convés enquanto gritava ordens a todos – TODOS ATENÇÃO! O RIO ESTÁ
FICANDO AGITADO, CUIDEM DAS CORDAS E DAS VELAS!
No mesmo instante todos começaram a se posicionar para controlar o navio
caso tivesse algum tipo de problema. A tempestade que se formou de repente era
forte, o convés do navio estava encharcado todos corriam de um lado para o
outro, Teach estava segurando o leme do navio, tentando manter o curso, o vento
estava forte demais e a força das ondas nos jogavam de um lado para o outro. Eu
me segurava em uma das escadas do navio tentando não cair na água. Por um
momento eu abri meus olhos, e vi, com certeza, a maior onda que poderia
imaginar, não seria nada bom se ela atingisse a gente, ia causar muitos
estragos, ou até mesmo afundar o navio.
-TEACH! – Gritei para ele. Ele me olhou e eu apontei para nossa esquerda,
a onda vinha chegando, sua expressão mudara, estava sério, ele estralou o
pescoço e começou a girar o leme em direção a onda. Louco. Ele só podia estar
louco. À medida que nos aproximávamos eu já tinha rezado para as deusas umas
vinte vezes. O barco encostou na base da onda e a madeira do navio rangia, a
maioria dos marujos estavam se segurando firmemente no mastro, e outros já
estavam caindo em cima das cordas. Estávamos subindo cada vez mais, o barco
poderia virar a qualquer momento, foi então que numa jogada de mestre e
totalmente artística, Teach virou o leme para o lado oposto e usou a própria
gravidade para impulsionar o navio para baixo. Inacreditável, estávamos
surfando uma onda gigante com um navio pesado. E Teach? Gargalhava como nunca,
em pleno momento de morte ele estava rindo da situação. Ser innisiano e capitão
de um navio, acho que era a combinação mais perfeita que podia existir. Pouco a
pouco o navio descia a onda que ia quebrando atrás de nós. Quando chegamos na
base podemos ter uma pausa para respirar.
-Parece que a tempestade está
acabando. – Disse Teach. Eu não entendi como ele sabia, porém era verdade, pude
ver as nuvens se abrindo e o rio começava a se acalmar, as ondas diminuíram e o
vento cessava, poderíamos enfim colocar as coisas em ordem. ~ Por mais que o
navio estivesse praticamente inteiro, mesmo com a habilidade fora do normal de
nosso capitão, sofremos algumas avarias no casco, e algumas velas precisavam
ser reparadas, mas estávamos vivos, era isso que importava.
-Onde estamos? – Perguntei para Teach. Ele coçou a barba, olhou ao redor
e então concluiu.
-Não viemos muito longe. Se ajeitarmos as coisas por aqui e então
consertamos o curso, podemos chegar no porto ainda hoje. – Ele me lançou um
sorriso.
Olhei ao redor e vi os tripulantes
todos ensopados, outros cuspiam água e tentavam desentupir os ouvidos. -Você já
passou por outros perrengues assim?
-Ah, acontece de vez em quando, maaas devo dizer que dessa vez foi
diferente. Você viu como eu surfei aquela onda? Quando aportamos vou contar
para todos no Porto. – Ele parecia contente com sua conquista. Ele estendeu a
mão e me ajudou a levantar, então só consegui me recompor. -ABRAM UM BARRIL DE
CERVEJA AMANTEIGADA! – bradou Teach. E como num passe de mágica um barril
apareceu rolando em nossa direção, onde ele tirou duas canecas e me deu uma.
-Batismo do Rio.
-O quê? – perguntei.
-É como chamamos quando alguém sobrevive a isso. Vamos brinde comigo e
ria um pouco, vamos dizer que isso é uma recepção calorosa. A alegria dele é
com certeza contagiante. Eu peguei uma caneca e bebi, ele ria enquanto
comentava da sua proeza. Os marujos estavam efetuando reparos no navio, e nós
bebíamos enquanto esperávamos. Teach bebia com gosto, cada caneca ele enxugava
a barba e pedia outra. Sem dúvida a cerveja amanteigada era muito boa. Ele
estava rindo quando parou subitamente. Ele bateu a caneca com força no barril.
-Logo agora... – Ele disse isso enquanto olhava para a água. Algo estava
errado. Kamaria ainda estava em Porto Cantante e voltava para casa. Na verdade,
ela dava voltas pela cidade. O rosto estava cansado e as mãos tremiam. Uma
sensação frustrante em seu corpo transbordava para fora. Além de não ter
conseguido dinheiro para levar pra casa, ela vira Zaki no meio da multidão.
Zaki escutou toda a história. Pela primeira vez ela tinha essa certeza. Um medo
da reação dele passou pelo seu corpo. De repente um grito. O mar recua
completamente. As pessoas gritam alvoroçadas por nunca terem visto esse
fenômeno em Porto. Uma sensação ruim se apossa de Kamaria e ela observa o fluxo
das águas.
- “Cair na água é perigoso agora. Principalmente para uma humana. Essas
ondas reviram o oceano e trazem à tona coisas que não queremos ver.” - diz uma
senhora que está próxima a ela. Kamaria sorri e observa a água retornando. A
cor esverdeada tão típica das águas do rio Innis vai se tornando barrenta da
terra revirada. A noite avança e as nuvens se dissipam. A lua, minguante, nasce
no horizonte. A água não possui calado suficiente para barcos navegarem, mas
alguns innisianos começaram a mergulhar e a nadar, procurando por vítimas. Com
medo do que possa ter acontecido e por não ter visto Zaki em lugar nenhum,
Kamaria se joga ao mar. A aparência de sereia se mostra em seu corpo molhado. A
Innisiana nada desesperadamente na direção que a onda seguiu.
Teach agia estranhamente, ele tinha percebido alguma coisa, para mim parecia que tudo estava certo, mas à medida que ele se aproximava da borda do navio sua expressão ficava cada vez mais séria. -Algo de errado? - Perguntei. Ele respirou fundo. -Tomara que não, acho que sua chegada ao porto vai ser mais turbulenta do que achávamos. -O que foi? Outra onda? -Eu sou o único innisiano que você conhece, então não tem como te culpar por ser ingênuo. Só fique atrás de mim e deixe que eu converse. Na hora eu não tinha entendido nada, mas foi então que ouvi o som de algo batendo no casco do navio. Não acho que tenha sido uma pedra. Uma figura podia ser vista subindo a bordo, e seguido dessas outras mais. A luz da lua iluminava seus corpos, eram altos e pareciam muito fortes, estavam armados como quem está pronto para lutar.
Bomani |
Eu cheguei mais perto dele.
-Estamos realmente bem?
-Vamos torcer para que eles estejam de bom humor, ou no pior dos casos,
podemos acabar no fundo do rio com o resto.
Um deles chegou mais próximo e fitou tanto Teach quanto a mim, e olhando
ao redor começou a julgar a tripulação. -Innisiano, você anda em um navio,
vestindo as roupas e socializando com eles, esses humanos. Teach apertou mais o
cinto que usava, e tomou um gole de seu cantil.
-Ora vamos, estávamos apenas transportando mantimentos para o Porto.
Quebre esse galho para a gente. - Pediu Teach. -Eu não tenho nenhum problema
com você, mas eles - apontou para a tripulação. - Não acho que podemos fazer
vista grossa quanto isso, afinal foram eles que começaram isso, e ainda mais,
seria interessante ter algo que comercializar no mercado. Talvez, só talvez,
eles não estivessem de bom humor, como eu sabia disso? Acho que uma lança
passando do lado do meu rosto responderia a sua pergunta. Eu nem tinha visto
quando ele se moveu, e nem o momento em que Teach aparou seu ataque com a
espada que mantinha na cintura. Eu estava atordoado.
-RECOMPONHA-SE, GIOVANNI! FOMOS CONVIDADOS A DANÇAR! - Gritou Teach. A
lua parecia tremer em tons aflitos. Ao redor de Kamaria, alguns poucos
Innisianos continuavam a busca por sobreviventes. A essa distância, é cada vez
mais difícil acreditar que alguém que não seja innisiano tenha sobrevivido.
- “Ainda estávamos no território de Porto Cantante. Os Innisianos daqui
são amigos dos humanos, então tudo deveria estar bem, tudo deveria estar bem.”
Kamaria repetia para si insistentemente, mas suas feições não deixavam de estar
aflita. Na linha do horizonte, os olhos da mulher vêem um navio. O coração
palpita freneticamente e o corpo, quase que no impulso visceral, se lança na
direção do navio. Se algum humano viu o navio ou foi resgatado por um sereiano,
ele provavelmente está lá. Ele precisa estar lá. A cauda nacarada bate na água,
espirrando o líquido por todos os lados. A sereia submerge para nadar mais
rápido. Innisianos não foram feitos para andar no ar. As brânquias na costela se
abrem e aspiram muita água, aumentando a oxigenação do sangue. Ela nada o mais
rápido que pode. Não demora muito o navio já se encontra próximo. Gritos viris
soam, acusando terror que se passa na nau. O metal tilinta e brilha no frágil
luar da lua minguante. Um cheiro de sangue já pode ser sentido no ar. Kamaria
está confusa. Os Innisianos de Porto Cantante não atacam navios. Eles
costumeiramente são bem vindos, desde que não venham para saquear seus
habitantes. A ideia de que Zaki poderia estar ferido lhe vem à cabeça e trás à
tona uma aflição fraternal que ela não havia sentido antes. Zaki era parte de
sua família. Ele é a família dela. E Kamaria não permitiria que sua família
fosse morta por qualquer que fosse. Ao chegar ao lado do navio, a Innisiana mergulha
o mais profundo que consegue e nada em direção à superfície com toda a
velocidade. Talvez esse seja o maior salto em água que ela tenha conseguido
fazer, ainda que não tenha conseguido saltar para dentro do navio. Ela se
agarra na madeira e olha para o mar. Alguns Innisianos que ela ultrapassou em
sua procura começam a se deslocar para o navio. De qualquer forma, parece que o
ataque não acontece pelo lado que ela está escalando.
Os braços femininos apresentam a força de quem cresceu sob as águas e
precisa de músculos resistentes para impulsionar um corpo submerso o tempo
todo. Ela fica parada ali, balançando a barbatana até que ela volte a secar.
Kamaria nunca lamentou tanto ser uma Innisiana de barbatana. Assim que a
transformação começa, um grito lhe escapa dos lábios e o braço fraqueja. Ela
finca a garra na madeira do navio para não cair e espera as pernas ficarem
completas. Ainda com a perna sangrando com a perda das escamas, ela continua a
escalada, com o som do tilintar dos metais cada vez mais próximo. Ao chegar na
borda do navio, os olhos da garota não acreditam no que está vendo. Uma luta
intensa entre innisianos e humanos. É quase um constante choque de vultos que
se atacam. Mal pode-se ver o reflexo das escamas sobre a luz tênue da lua
minguante. Kamaria olha ao redor, o navio está em território de Porto Cantante.
Ela volta o rosto para dentro do navio mas abaixa rapidamente o rosto. Uma
lança é fincada na madeira, próxima a sua cabeça. Humanos que não sabem lutar
se protegem, enquanto outros pegam qualquer coisa que estiver no caminho para
poder se defenderem. Innisianos estão na borda oposta do navio, alguns rugem
para os humanos, outros riem da situação, atentos para a clara vantagem do
grupo invasor.
O Navio estava perdido. Era apenas questão de tempo. Teach ter bloqueado
aquele ataque me salvou da morte certa. Ele daria conta daquele innisiano, já
que eles possuíam praticamente a mesma força, porém eram muitos, estávamos
cercados, foi quando percebi que um deles estava me encarando, ele estava
pronto para acabar comigo, empunhei meu escudo e espada. Precisava ao menos me
defender. Ele avançou em minha direção, ergui o escudo e senti o choque que sua
arma fez, era forte, meu braço chegou a adormecer, mas consegui defletir.
–Cuidado garoto, as armas innisianas muitas vezes são imbuídas com
veneno! - Alertou Teach. Eu não conseguia lutar contra ele, era muito diferente
do que lutar contra o velhote. “Você vai encontrar oponentes mais fortes que eu
lá fora” Ele tinha me dito isso, mas eu não achava que seria tão cedo assim. Eu
precisa durar o máximo possível até que Teach conseguisse uma brecha para me
ajudar, então comecei a me esquivar, cada avanço do innisiano acelerava meu
coração, se eu fosse acertado poderia não me matar, mas o veneno tomaria conta
do meu corpo. Olhei ao redor e muitos dos tripulantes estavam tentando
sobreviver também. Alguns corpos estavam no chão, não parei para contar e nem
para saber, será que conseguimos ao menos derrotar um deles? Não tinha muito
tempo para pensar, meu oponente me seguia ferozmente, ele me encurralou num
canto e forçou meu escudo contra meu corpo, não era possível que ele poderia
perfurar o metal, mas isso causaria um desequilíbrio que poderia levar a minha
derrota. Assim que ele afastou a lança rolei para o lado, o que fez com que ele
prendesse a arma na madeira, não seria muito, mas era a janela necessária para
que eu conseguisse me distanciar, subi as escadas até a parte do leme, tentando
recuperar o fôlego. E com um salto ele me alcançou.
-Você corre e corre, humano. Me enfrente! - Gritou ele. Eu não tinha como
fugir dele, mas precisava. As cordas de manutenção das velas dançavam no ar
enquanto a lua era o holofote de uma batalha sangrenta a bordo do Esperança.
Teach ainda estava ocupado com outro innisiano.
-Você escolheu o lado errado! - Disse ele enquanto disputava força contra
a espada de Teach.
-Há muito tempo essa guerra não tem lado certo e nem errado, deveríamos
ter parado quando a Trégua foi assinada. - Respondeu Teach.
Os dois estavam lutando com afinco, nunca tinha visto tamanha
proficiência tanto de um lado quanto do outro. O choque que as lâminas
produziam para uns parecia ser ensurdecedor, mas elas cantavam. Até mesmo o
ferro e aço cantam quando empunhados da maneira correta. Teach segurou a lança
do oponente e conseguiu afastá-lo, foi quando puxou de sua cintura uma pistola
e mirou na cabeça do inimigo. Era só puxar o gatilho. Ele não o fez. Preferiu
atirar na lança do oponente e deixá-lo desarmado, uma janela para conseguir
ajudar o resto da sua tripulação que o esperava. Enquanto isso eu estava
encurralado na popa do navio. Meu corpo doía. Não sabia o por quê.
-O veneno deve estar fazendo
efeito. - Disse o innisiano. Eu fui atingido? Quando? Foi aí que notei o
ferimento na perna, a única parte da minha armadura que tinha sido rompida, e
estava sangrando. O tiro se fez soar por todo o navio, chamando a atenção de
todos. O barulho da lança voando longe, ricocheteando a bala, faz innisianos e
embarcados se abaixarem. Kamaria aproveita a deixa e pula no navio. A mão
desliza pela lança que outrora quase a atingiu na cabeça e a puxa. Seria uma
insanidade entrar em um conflito estando ela completamente desarmada, apenas
com suas garras. A água estava muito longe e conjurar um feitiço no meio do
caos, sem suporte, a deixaria vunerável. Innisianos que percebessem que ela não
é do bando iriam matá-la. Humanos que a confundissem com alguém do bando a
matariam também.
- “Essa é a pior situação que você se meteu, garota. Zaki, não esteja
aqui, por favor.” Com a noite escura, apenas a adrenalina e o instinto guiavam
o movimento das pessoas que lutavam desesperadamente por suas vidas e seus
ideais. No chão, corpos, sangues, vísceras rolavam. Era impossível não tropeçar
em algo assim. O líquido quente da vida escorrendo conforme a batalha
prosseguia. Indiscutivelmente a maior parte dos corpos caídos eram de humanos.
Esse provavelmente era um dos navios clandestinos que insistiam em trazer
humanos para a Alba Etérea. Flashes de memória lhe vêem à cabeça da noite que
salvou Zaki e do trabalho de sua família. Kamária fraqueja, se apoia. Um humano
olha para ela. Os olhos queimam de raiva e desespero:
- “Amaldiçoada seja! Morra demônio das águas!” O homem anuncia o ataque e
avança pra ela com um bastão com a ponta quebrada em forma de lança. Kamaria
pula para o lado e olha bem nos olhos do humano. Antes da segunda ofensiva, uma
lança o transpassa o peito, enquanto o sangue lhe escapa pelos buracos do
corpo. A menina olha horrorizada. Já fazia tempo que não presenciava essa cena.
Logo ela balança negativamente a cabeça. - “Se recomponha. Lembre-se de quem
você é.” Independente de quem ela seja, se continuar assim ela também seria
morta. Há muito tempo está longe do campo de batalha e suas reações já não são
as mesmas. Deveria haver outra saída. Era imprescindível que houvesse outra
saída dessa situação. Os olhos passeiam rapidamente pelo ambiente. Como
Innisiana, Kamaria consegue ver ao redor. Ela olha atentamente para a lança.
Talhado no bastão de coral, há um desenho de meia lua. Os olhos de Kamaria
brilham. Há uma chance de se sair dessa situação. A sereiana se concentra. As
escamas dela brilham, ampliando a luz da lua. Os símbolos da meia lua das armas
brilham junto com a menina. Ela bate a lança 4 vezes no chão com força e diz
com voz alta:
Omi ni ile wa,
Agbegbe wa, igbesi aye wa
Oṣupa oṣupa yoo ṣe itọsọna awọn
Ati eje ota yoo je isegun wa
fun ogo Innis ati awon omo re
gbogbo omo omi
ẹja ọmọ
A água é nossa casa,
Nosso território, nossa vida
A lua crescente guiará nossos
passos
E o sangue do inimigo será a nossa vitória
para a glória de Innis e de seus
descendentes
todos os filhos das águas
filhos de peixe
Os humanos se assustam com o
brilho da que a innisiana emana, e os innisiano se mantém confuso. Kamaria
avança agora, ligeiramente duvidosa mas em pose altiva. A voz traz a
profundidade calma mas raivosa dos mares:
- “Sou Kamaria, filha de Nia e de
Omu, líder dos Dempsey. Quem está liderando essa incursão?” - Silêncio de todos
os lados. Todos diriam que estão mais incrédulos com a situação que está
acontecendo. A herdeira desaparecida há 40 anos. - “Não vou repetir mais uma
vez. Quem está liderando essa incursão?” Ela diz de modo mais imperativo e bate
o cajado no chão, esperando uma resposta.
A dor na perna era insuportável, não tinha mais como me manter em pé e o
innisiano se aproximava, o veneno parecia não ser letal, mas eu podia sentir
como se meu corpo estivesse começando a paralisar. Era isso, nem tinha chegado
em terra firme, e já ia empacotar mais cedo. Olhei ao meu redor buscando ajuda,
nada. Foi quando a lança que ele empunhava começou a brilhar. Ele parou e
rapidamente se virou para o convés onde todos os outros se encontravam, eu
podia ouvir alguém falando ao longe, seja o que tivesse acontecido, tinha me
salvado. Ouvi as batidas subindo as escadas, era Teach.
-O que aconteceu? - Perguntei com as forças que me restavam. Ele me
sentou no chão e começou a examinar minha perna.
-Olha, não sei se conta como sorte, por causa do veneno no seu corpo, mas
acho que a gente conseguiu um pequeno tempo para respirar. E em relação ao
veneno, eu não consigo fazer nada agora, você não vai morrer, se tiver cuidados
é claro.
Filho da mãe, brincando em uma hora dessas.
-Venha, vou te ajudar a levantar. Ele era forte o bastante para me
colocar de pé e servir de muleta. Fomos nos aproximando do leme e das escadas.
Estavam todos parados, olhando para uma única direção, uma innisiana segurava
uma lança enquanto demandava respostas dos outros. Me apoiei no corrimão e
comecei a descer.
-Cuidado, rapaz. Você está quente,
acho que começou a ter febre. - Disse Teach. Ele tinha razão, eu precisava parar
e me sentar. Ele me ajudou a sentar na escada onde examinei a situação. O
innisiano que outrora começou a incursão estava parado perplexo, olhando a
innisiana, que aparentava ser uma jovem. Cabelos prateados reluzentes a luz
noturno e a pele escura. Ela não estava ali antes, essa era a minha certeza.
-Toma, um pouco de água. - Me ofereceu Teach.
O innisiano avança em direção a Kamaria. O olhar perplexo dele acusa a
dúvida sobre como proceder na situação. O olho do homem do mar percorre o
ambiente. A incursão estava quase completa, o navio tomado e pronto para ser
naufragado. Os tripulantes e os embarcados não seriam um grande problema. O
único desafio seria o capitão, um innisiano como os outros. Mas, estando em
menor número, não duraria muito tempo. Tomado por uma fúria e angústia, ele
avança de modo grotesco em direção a innisiana e fala, como se ela fosse sua
presa:
- “Como ousa voltar depois de tanto tempo desaparecida e impedir essa
incursão?” Kamaria arqueia uma sobrancelha e observa o Innisiano. Aquele tom de
voz e atitude prepotente lhe eram extremamente familiares. Um sorriso nasce em
seus lábios e, sem recuar, ela diz:
- “Bomani. O melhor guerreiro da nossa geração. Quase tão bom quanto
minha mãe. Já esqueceu o seu lugar?” As palavras da sereia soaram como um tiro
de canhão atirado no exército. A moral do grupo invasor estava profundamente
abalada com a situação. Kamaria percorre os arredores apenas com o olhar.
Estranhamente vê um innisiano, ao longe, cuidando de um humano. Parece que ela
não era a única preocupada com essa espécie frágil. Bomani, profundamente
relutante, abaixa a cabeça e a reverência, seguido por todo o grupo. Os humanos
olham estupefatos para o acontecimento.
-“ Bomani. Estamos fora do
território do nosso clã. Essa incursão claramente é uma violação da soberania
dos que comandam Porto Cantante. Devo lembrá-lo que uma de suas funções é não
iniciar uma guerra contra nossos irmão e irmãs? A guerra contra os humanos em
nosso território já não lhe basta? O que os outros clãs fariam conosco se
soubessem disso? “
O Innisiano começa a suar frio. Ela dá um soco com força no piso e o
quebra. Teach tem um ímpeto de protestar, mas segura a língua. Provocar os
Innisianos não lhe parecia a melhor ideia. Farpas da madeira voam em algumas
direções. Bomani range os dentes, respira profundamente e fala com voz rouca e
hesitante:
- “Tenho certeza que não irias contra o clã de vosso Pai e vossa Mãe,
pondo-nos no meio de uma guerra com nossos irmãos…”
- “ E o que você sabe de mim? Calado. Eu ainda não terminei.” Kamaria
respira profundamente até que volta a ficar calma. A suas escamas ainda
brilham, revelando nuances de seu rosto que estavam escondidos sob a luz tênue
das primeiras luas novas da primavera. - “Você vai encerrar esse ataque
imediatamente.”
Bomani levanta a cabeça e olha perplexo. Nunca, na história do clã, foi
ordenado recuar de uma incursão. Isso seria inadmissível, mesmo Kamaria sendo a
futura líder do clã. –
- “Antes que você diga algo, você não irá de mãos abanando.” Kamaria se
aproxima de Bomani. Uma das mãos vai até seu braço e segura uma de suas escamas
e a puxa com força e retira uma delas. Um pequeno gemido de dor lhe escapa a
boca e um filete de sangue escorre pela pele, pingando lentamente da mão até o
chão: - “Tome, agora você finalmente pode provar minha morte no clã. Serei uma
desgarrada. Você sabe que esse é um caminho praticamente sem volta. E você será
o próximo líder do clã. Essa é a troca que eu proponho.”
Kamaria oferece a escama nacarada
a Bomani. Com ela, finalmente o ritual de sucessão poderia ser feito e ele
seria o próximo líder com falecimento de Omu, o pai de Kamaria. Bomani olha
para o lado. O ataque deixou os humanos mais para lá que pra cá. Ele sorri de
modo ganancioso, pega as escamas e ordena:
- “Recuar!” Os Innisianos ainda observam confusos. Bomani infla suas
brânquias e repete com toda a força que possui: - “Vocês não ouviram? RECUAR!”
E assim como chegaram, os Innisianos partiram. Quase como encantados, deixando um rastro de destruição e morte pelo local. Kamaria se aproxima do Innisiano com o humano que estava sentado. Logo ela percebe que ele não está bem. Ela coloca a mão na testa do humano e percebe que ele está com febre. Ela suspira e lhe deixa escapar dos lábios:
Teath |
- “Essas bolas de carne são tão frágeis. Estou surpresa que vocês não
foram derrotados logo.” E virando pro Innisiano pergunta - “Ele foi ferido, não
foi?”
Teach coça a barba. -Sim, a perna dele. Sofreu um corte enquanto
enfrentava um dos seus amigos, o veneno já está correndo há um tempo- Respondeu
ele. Kamaria olha com atenção o corpo do jovem. Ela suspira e pede:
- “Me ajude a despi-lo e dê-me uma
faca. O Porto Cantante não está tão perto, o navio está avariado e eu não quero
que esse seja o primeiro humano que irá manchar minhas mãos de sangue.”
-Vamos lá, campeão. A moça tá sendo bondosa o suficiente pra te ajudar,
então coopera com ela, ok? - Disse Teach enquanto puxava uma faca de bota e a
entrega para a innisiana.
-Eu já tô quase morto mesmo - Disse Giovanni enquanto tirava a parte da
roupa em que tinha se ferido. A armadura não tinha aguentado nada. Kamaria
segura a faca na mão do innisiano e a deixa reservada. O rosto se direciona
para perna o humano despiu. Ela encosta os lábios na ferida do homem e suga uma
boa parcela de sangue. Logo ela cospe e o faz novamente. Uma, duas, três,
quatro vezes até que ela não sinta mais gosto que não seja de sangue:
- “Não tem gosto de amônia. Não é o veneno natural dos innisianos. Se
fosse você já estaria morto.” - ela diz enquanto pega a faca e se aproxima da
perna dele.
-Então eles estavam usando outro tipo de veneno. - Concluiu Teach. - Mas
por quê? Não lembro muito do tempo que passei no reino Innis, mas acho que não
é o normal. A dor ainda permanecia na perna, mas pelo menos o veneno estava
fora de circulação. Giovanni para e olha para a faca.
-Agora me diz, pra que isso aí? - Enquanto aponta para a faca. Kamaria se
recusa a olhar para Giovanni e segura a perna dele com força. A faca se
aproxima da ferida e faz cortes limpos em cima e em baixo do ferimento. Os
cortes sangram e Kamaria respira aliviada:
- “Isso vai doer, mas as sangrias nos darão mais tempo. Ele ainda precisa
do antídoto. E não… esse ataque não foi comum. Afinal, quem é o capitão tolo
que traz humanos clandestinos no período do ano que os Innisianos estão mais
ativos e ouriçados?”
Teach toma um trago de sua bebida.
-Um favor. Eu devia um favor para um amigo, e quando vi o rapaz pensei em
ajudá-lo. Não achei que teríamos tanto azar assim. - Ele examinava o navio
praticamente acabado. -E também não contava com uma tempestade nos tirando de
curso, se não fosse por isso teríamos chegado mais cedo.
-Você acha que a gente chega no Porto ainda? - Pergunta Giovanni enquanto
estica as pernas. Kamaria olha estupefata para Teach:
- “Sua prioridade deveria ser ver quem tem como ser salvo e levar para
porto de alguma forma. Nem que seja em botes de salvamento. Ancore o navio
aqui, se ele não tiver condições de velejar. Esse território é de Porto
Cantante. Ninguém mais vai atacá-lo. Logo sua tripulação poderá começar os
reparos e vocês poderão seguir para uma das docas.” - ela diz enquanto rasga o tecido de sua roupa e
amarra a perna do jovem humano à sua frente. Ela se aproxima do rosto dele para
que ele possa a ver melhor, já que está escuro: - “Você não pode dormir até
tomar o antídoto, entendeu? Qual o seu nome?”
- “Giovanni, sou da outra margem do rio, atualmente tentando não morrer
antes de chegar ao outro lado, e pode deixar, por mais que eu queira dormir,
vou ficar acordado.” Ele olhava para a innisiana que o ajudou. Ele podia
confirmar algumas histórias dos bêbados de sua vila, eles realmente tinham
feições bonitas.
Teach se afasta e comanda seus homens. -Vocês ouviram a moça, arrumem
tudo e ajudem os feridos, aqueles que puderem andar desçam os botes. Feridos
primeiro, mantimentos depois, e então baixem a âncora. O Esperança fica aqui
essa noite. Amanhã o vamos buscar. Rapidamente seus poucos homens que restaram
começaram a cumprir suas ordens.
-“ E você? Qual seu nome?” -
Pergunta Giovanni para a innisiana, enquanto estica a mão para pedir ajuda para
levantar.
- “Kamaria, me chamo Kamaria. E atualmente, é meu único nome.” ela deixa
escapar a informação num suspiro por tudo que aconteceu. Em um único dia ela
perde seu pandeiro, revela seus poderes, conta para Zaki a história que estava
escondida há 30 anos e ainda deserta a família. Kamaria estende a mão para
Giovanni e o ajuda a se levantar, colocando o braço dele sobre o ombro dela.
Ela ainda possuia o cheiro da água do rio em seu corpo. Ela o conduz ao bote
lentamente, para que possa guiar este e outros sobreviventes para Porto
Cantante e pisar nessa cidade pela última vez.
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