Ecos de Perfume

 

Sussurros Etéreos


A Taverna de Yule estava cheia naquela tarde, o som de vozes misturava-se ao crepitar suave do fogo na lareira, criando um ambiente aconchegante, embora carregado de energia. Kamaria, sentada ao lado de Eldrin e Lirion, mal percebia o movimento ao redor. Havia uma inquietação em seu peito que não conseguia nomear, uma pulsação suave que a fazia sentir como se algo a chamasse de longe, despertando memórias que ela havia tentado deixar para trás. Enquanto seus amigos conversavam, ela mal conseguia prestar atenção; algo a distraía profundamente.

Foi quando sua atenção foi capturada por um grupo de viajantes sentados em uma mesa próxima. As palavras deles, entrecortadas pela conversa ruidosa da taverna, chegaram a seus ouvidos como um sussurro carregado pelo vento. Estavam discutindo sobre um humano misterioso que havia sido visto nas redondezas. “Havia algo de diferente nele,” disseram. "Um perfume raro, exótico, que não se vê por aí." Um dos homens inclinou-se para frente, como se partilhasse um segredo. "Era o cheiro de rosa d'água."

O coração de Kamaria pulou no peito, como se uma corda invisível a tivesse puxado de volta ao momento em que ouvira esse perfume pela última vez. Não era uma coincidência. Ela sabia exatamente de quem eles falavam, e uma onda de lembranças a invadiu com uma força inesperada. Giovanni. Ele estava perto. O humano que ela havia salvado a bordo do Esperança enquanto procurava desesperadamente por seu irmão, Zaki. A decisão que ela tomara naquele navio — entregar sua escama a Bomani, renunciar ao direito de liderar o clã da Lua Crescente — veio à tona como uma faca afiada. A lembrança daquilo ainda doía, mas o que ela fez havia sido necessário. Ela o salvou. Salvou todos, inclusive Giovanni, que à beira da morte parecia perdido.

O cheiro de rosa d'água a levou de volta àquela noite. Naquele momento de incerteza, enquanto Giovanni lutava para sobreviver, o perfume se tornou um símbolo do cuidado silencioso que ela oferecia, como um último fio de esperança. Na época, Giovanni estava tão fraco que mal conseguia se manter consciente. O alquimista do porto havia estabilizado sua condição, mas Kamaria sabia que ele ainda precisava de mais. Levou-o para sua casa, para um lugar onde poderia vigiá-lo e cuidar pessoalmente de suas feridas.

Kamaria se recordava da forma como Giovanni descansava em seu pequeno quarto, iluminado apenas pela luz suave da lua que se infiltrava pelas frestas da janela. A quietude do espaço contrastava com a violência da tempestade e da batalha que quase tiraram a vida dele. Giovanni estava desacordado, o peito subindo e descendo lentamente, como se cada respiração fosse uma batalha por si só. Havia algo de pacífico, quase etéreo, na forma como ele parecia repousar, mas Kamaria sentia o peso de sua vulnerabilidade.

Ela se lembrava de cada detalhe, como se estivesse vendo aquilo novamente diante de seus olhos. Primeiro, ela havia despido Giovanni com todo o cuidado, removendo suas roupas sujas, manchadas pelo mar e pela batalha. Sua pele estava febril ao toque, e ela pôde sentir a fragilidade em seus músculos tensos. O calor que emanava dele a fez hesitar por um momento — havia algo tão profundamente humano e vulnerável naquele ato. Giovanni estava completamente exposto a ela, indefeso, e Kamaria sentiu uma onda de proteção crescer dentro de si. Não era apenas o dever de curá-lo, mas um impulso mais forte, quase primitivo, de mantê-lo seguro.

Com mãos habilidosas e o coração levemente acelerado, ela aplicou o óleo de rosa d'água nos ferimentos abertos de Giovanni. A fragrância se espalhou rapidamente pelo quarto, perfumando o ar com um aroma delicado, aquático, que parecia dançar junto à luz da lua. Enquanto deslizava suas mãos sobre os ferimentos dele, os dedos movendo-se com uma suavidade quase reverente, Kamaria sentia a textura da pele quente sob suas mãos, a tensão que lentamente se dissipava sob seu toque.

Cada movimento parecia criar uma conexão profunda, uma ligação invisível. Giovanni, mesmo inconsciente, reagia de forma sutil. Seus músculos relaxavam pouco a pouco, sua respiração antes irregular tornava-se calma. Em um momento quase mágico, ele suspirou suavemente, um som quase inaudível que fez Kamaria sentir como se estivesse tocando não apenas seu corpo, mas algo além — uma parte dele que ela ainda não compreendia totalmente.

Naquele breve instante, o toque de Kamaria parecia mais do que um gesto de cura. Era como se as barreiras que separavam suas raças, suas histórias e suas realidades tivessem desaparecido, deixando apenas a essência de dois seres conectados. Kamaria sentiu o coração acelerar ao perceber que, de alguma forma, o salvamento de Giovanni havia transcendido o simples ato de cuidado. Algo nela também havia mudado naquela noite, como se, ao salvá-lo, uma parte dela tivesse sido tocada por ele.

Agora, sentada naquela taverna, ao ouvir sobre o humano com o perfume de rosa d’água, Kamaria não pôde ignorar a intensidade da intuição que a invadia. Giovanni estava por perto. Ele havia sobrevivido, e a fragrância que o envolvia trazia consigo um pedaço dela, um pedaço daquela noite que ela não conseguia esquecer. Havia uma ligação entre eles, algo que ela não podia ignorar.

"Eldrin, Lirion," disse Kamaria, com a voz baixa, mas firme, enquanto seus dedos apertavam levemente a borda da mesa. "Parece que Giovanni está mais próximo do que pensávamos."

Eldrin, sempre o observador atento, inclinou-se ligeiramente para frente. Seus olhos, cheios de sabedoria antiga, brilhavam de leve sob a luz da lareira. "Você sente isso, Kamaria?" Ele perguntou, a voz tranquila, mas com um tom curioso. "Uma ligação entre vocês?"

Kamaria assentiu, as palavras saindo com uma mistura de certeza e hesitação. "Eu não posso ignorar o fato de que ele carrega o cheiro da rosa d'água. É algo que eu mesma apliquei. Ele está por aqui... e sinto que preciso encontrá-lo."

Naquele momento, enquanto as sombras dançavam ao redor deles na Taverna de Yule, Kamaria soube que Giovanni não era apenas uma memória distante. Ele estava próximo, mais real e presente do que nunca. E a busca por ele seria inevitável.

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 Enquanto Kamaria e seus companheiros discutiam as implicações do boato sobre o misterioso humano com o perfume de rosa d'água, longe dali, Bomani caminhava à margem do rio Innis, orquestrando seus próprios planos sombrios. O líder do clã da Lua Crescente estava tomado por uma obsessão: capturar Kamaria e restaurar o que ele acreditava ser o equilíbrio quebrado por sua traição. Cada passo seu era pesado com raiva contida, cada pensamento envolto na busca por vingança. Ele havia reunido um grupo de guerreiros Innisianos leais, prontos para caçá-la sem hesitação. Mas Bomani sabia que não seria simples. Kamaria era astuta e conhecia bem as táticas do clã. Para ele, seria uma caça — e Kamaria seria sua presa.

 A margem do rio Innis era uma paisagem pitoresca, mas ao mesmo tempo carregada de lembranças amargas para Bomani. Ali, nas águas calmas, ele se encontrava em comunhão com a tradição e o poder que vinha da linhagem de seu clã. Mas desta vez, não havia paz. Apenas uma raiva crescente. Ele sabia que, sem pistas mais claras, sua busca seria em vão, por isso, seu próximo alvo era alguém que, embora odiado, poderia ter as informações que ele tanto procurava: Teach, o capitão mestiço do Esperança.

 O Esperança havia sido destruído numa tempestade devastadora, a mesma que quase custou a vida de Giovanni e que levou Kamaria a tomar a decisão de salvar as vidas a bordo, incluindo a de Teach. Porto Cantante, a cidade portuária que antes fervilhava de comércio e energia, estava agora um reflexo melancólico de seu antigo esplendor. Ruínas se amontoavam nas esquinas, enquanto trabalhadores e moradores se esforçavam para reconstruir suas vidas. A tristeza pairava sobre o lugar como uma neblina densa, e o luto pelas vidas perdidas era palpável nas ruas.

 Bomani havia chegado à cidade com o crepúsculo, o ar impregnado pelo cheiro de madeira queimada e maresia. Os edifícios parcialmente destruídos criavam sombras longas e deformadas nas ruas silenciosas, e o som de martelos e serras ecoava em contraste com o murmúrio sussurrado de pessoas ainda em choque com as perdas. Porto Cantante estava de luto, mas Bomani não sentia compaixão. Sua missão era clara: encontrar Kamaria e puni-la por sua traição.

 As informações sobre Teach não eram difíceis de encontrar. Como capitão do Esperança, ele era uma figura conhecida na cidade, e mesmo agora, após a destruição do navio, sua presença não passava despercebida. Mas encontrar o mestiço Innisiano não seria simples. Teach era astuto e discreto, e Porto Cantante estava repleta de esconderijos para aqueles que desejavam permanecer ocultos. Bomani percorreu a cidade, buscando sinais do capitão em cada esquina, enquanto sua paciência se esgotava a cada vez que as pistas levavam a becos sem saída.

 Os olhares desconfiados dos cidadãos locais o seguiam enquanto ele caminhava pelas ruas. A mera presença de Bomani, com sua postura rígida e o símbolo do clã da Lua Crescente bordado em suas vestes, criava um desconforto evidente. Porto Cantante, embora destruída, ainda carregava o peso de segredos escondidos entre seus muros rachados e telhados caídos.

 Ele passou por taverna após taverna, onde as conversas sussurradas cessavam sempre que ele se aproximava. Cada vez que perguntava por Teach, recebia apenas olhares cautelosos ou respostas evasivas. Mas Bomani não era tolo. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém falaria, e foi no terceiro dia de sua busca que encontrou uma mulher idosa, com as mãos calejadas e o rosto marcado pelo tempo, que lhe deu a pista final.

 "Ele está no cais," disse ela com um suspiro pesado. "Não é mais o homem que era antes... nem o capitão de antes. Mas ele ainda observa as águas... como se esperasse algo que nunca vai voltar."

 Bomani seguiu a pista com a determinação fria que o caracterizava. O cais estava parcialmente destruído, pedaços de madeira flutuando à deriva nas águas. O som das ondas suaves batendo contra os escombros era quase hipnótico, mas Bomani estava imune ao ambiente melancólico. E então ele o viu: Teach, sentado à beira de um cais quebrado, observando o horizonte. Sua figura solitária contrastava com a vastidão do mar à sua frente, como se o capitão estivesse à deriva, tanto em corpo quanto em alma.

 Teach se ergueu lentamente quando percebeu a aproximação de Bomani, a tensão evidente em seus movimentos. Seus olhos — de uma cor peculiar, misto da linhagem Innisiana e humana — fitavam o líder com uma serenidade aparente, mas havia algo no ar que sugeria uma ameaça contida. Teach sabia o que estava por vir.

 "Teach," começou Bomani, com a voz baixa e cortante, como uma lâmina prestes a ser desembainhada. "Eu sei que Kamaria estava no seu navio. Sei que você a ajudou. Onde ela está agora?"

 Teach não desviou o olhar. Sua expressão era de exaustão, mas também de um certo desdém. "Kamaria salvou vidas, fez o que tinha que ser feito," respondeu ele, sem ceder. "Mas depois disso, não sei para onde foi."

 Bomani deu um passo à frente, o corpo tenso de raiva. Ele sabia que Teach era teimoso, mas a frustração começava a tomar conta. "Não minta para mim, Teach. Eu sei que você sabe mais do que está dizendo."

 O capitão apenas cruzou os braços, a expressão serena. "Se soubesse onde ela está, talvez te dissesse. Talvez não. Kamaria salvou quem você estava disposto a sacrificar. Não vai encontrá-la através de mim. Ela segue o próprio caminho."

 A raiva queimava nos olhos de Bomani. Teach era um enigma, difícil de quebrar, mas Bomani sabia que torturá-lo ou matá-lo só criaria problemas maiores. O mestiço ainda tinha respeito entre muitos Innisianos e humanos. Não, ele teria que encontrar outra maneira de rastrear Kamaria.

 Bomani saiu dali com os punhos cerrados, frustrado pela falta de cooperação, mas determinado. Sabia que estava perto. Caminhou pelas ruas escuras e ainda em ruínas de Porto Cantante, passando por trabalhadores que tentavam reconstruir suas casas e vidas. As conversas ao redor eram abafadas pelo luto e pela devastação, e cada palavra sussurrada soava mais como um eco perdido entre os escombros.

 Foi então que, ao passar por um grupo de pescadores no cais, algo chamou sua atenção.

 "Vocês viram aquele homem?" sussurrou um dos pescadores, gesticulando para os outros. "O estranho com o perfume raro... como é que se chama mesmo? Rosa d'água."

 Bomani parou imediatamente. Rosa d'água. O nome reverberou em sua mente como um trovão. Ele sabia que o óleo de rosa d'água era raro, um perfume de hierarquia, usado apenas por Innisianos de importância, e Kamaria certamente o possuía. Ela usara esse óleo ao cuidar dos feridos no Esperança. A menção de um homem com aquele perfume era peculiar demais para ser ignorada.

 Ele se aproximou dos pescadores, seus olhos agora em chamas com uma nova determinação. "Esse homem," disse ele, a voz baixa e perigosa, "onde ele foi visto?"

 Os pescadores se entreolharam, nervosos pela súbita abordagem. "Aqui... em Porto Cantante," respondeu um deles, hesitante. "Ele estava pelas redondezas, não temos certeza de onde foi. Mas... o cheiro... não era comum."

 Bomani recuou, satisfeito. A memória do humano que Kamaria havia protegido durante o ataque ao Esperança voltou à sua mente. Ele se lembrou de como ela o impedira de matá-lo, e agora aquele humano estava vivo, e carregava consigo o rastro inconfundível de Kamaria.

 Um sorriso frio e calculado curvou os lábios de Bomani. Agora ele tinha uma pista, algo que poderia levá-lo diretamente a Kamaria. O perfume de rosa d'água, um indício que jamais poderia ter previsto, seria o fio que o guiaria até sua presa.

 "Ela não escapará desta vez," murmurou para si mesmo, seus olhos brilhando com uma determinação implacável.

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De volta à taverna, Kamaria permanecia absorta em seus pensamentos, tentando desvendar as peças desconexas que o destino parecia colocar diante dela. O perfume de rosa d'água, que ela havia usado em Giovanni, pairava como um fantasma do passado, uma pista clara, mas carregada de incertezas. As imagens de Giovanni, entrelaçadas com a lembrança daquele toque íntimo e do cuidado silencioso, ainda estavam envoltas em sombras. Ele estava por perto, ela sabia disso. Mas o que mais o esperava nas esquinas misteriosas de Alba Etérea?

Ao seu lado, Eldrin e Lirion trocavam olhares sutis de preocupação. Eles também percebiam o turbilhão interno de Kamaria, mas sabiam que ela precisava processar aquilo em seus próprios termos. A taverna ao redor deles estava viva com histórias e sussurros. Entre as vozes, algo ressoava com maior intensidade — as histórias sobre o Encantado. A figura misteriosa era envolta em lendas, descrita com tons quase sobrenaturais. Um ser etéreo, de aparência surreal, cuja presença evocava tanto fascinação quanto temor. Mas o que chamava a atenção de Kamaria era o modo como a história do Encantado parecia se entrelaçar com sua própria busca.

 As conversas sussurradas ao redor mencionavam uma figura vista nos cantos mais escuros da cidade, sempre à beira do visível, como se dançasse entre os planos da realidade e do mito. Para Kamaria, Giovanni, o perfume da rosa d'água e esse Encantado representavam peças de um enigma maior, um que ela ainda não conseguia desvendar completamente.

 "Algo maior está acontecendo," ela disse finalmente, sua voz carregada de uma mistura de apreensão e determinação. Ela olhou para seus companheiros, seus olhos profundos e decididos. "O Encantado, Giovanni... tudo parece estar convergindo para algo. E nós precisamos descobrir o que é."

 Eldrin, com sua sabedoria inata, assentiu levemente. "Essas forças não se movem por acaso, Kamaria. Talvez estejamos nos aproximando de respostas que nem imaginamos procurar."

 Lirion, por sua vez, ficou em silêncio, mas seus olhos refletiam a mesma curiosidade e cautela que os de Kamaria. Eles sabiam que a presença desse Encantado não era uma coincidência.

 "Precisamos seguir o rastro desse Encantado," Kamaria declarou, agora com a voz mais firme. "Seja o que for, pode estar ligado ao que estamos procurando. E talvez... ele possa nos guiar a respostas maiores."

 Conforme o trio se levantava para sair, uma estranha quietude pareceu envolver a taverna por um breve instante. As sombras de Alba Etérea pareciam se mover com uma vida própria, espreitando seus passos, como se a cidade estivesse desperta e ciente de seus segredos. O vento sussurrava algo nas vielas estreitas, e um poder antigo e silencioso começava a despertar, guiando-os para o desconhecido.

 A sensação de que estavam à beira de um encontro com algo extraordinário permeava o ar, e Kamaria sabia que cada passo dali em diante os levaria mais fundo nos mistérios que envolviam Alba Etérea, o Encantado e... Giovanni.

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