**Parte 1: A Introdução de Peter e os Eventos na Taverna**
Sangue na Água. Lembro-me de poucas coisas daquela noite. Além do hidromel e
das memórias da exaustiva viagem, tudo o que lembro é referente ao que viria
após meu retorno à taverna. Era tarde, e voltar ao forte caminhando parecia uma
tarefa impossível depois de um dia de tanto caminhar. Decidi, então, passar a
noite na **Caldeirão Borbulhante**, uma taverna que ficava no porto. Estava
longe de ser a mais luxuosa das tavernas, mas suas paredes carregavam uma
familiaridade acolhedora, com cheiros de madeira envelhecida e o sempre
presente aroma de carne assada. Pedi hidromel, na esperança de repor as
energias e aliviar o cansaço que me envolvia como uma névoa. Mas o descanso que
eu tanto desejava não viria tão facilmente.
Pouco depois de me deitar, fui despertado por algo que, à primeira vista,
parecia um sonho perturbador. Mas logo percebi que os gritos que ecoavam em
meus ouvidos não eram parte de nenhum pesadelo. Eram reais, ainda que
distantes, e me atravessavam como lâminas de gelo. Acordei com um sobressalto,
os sentidos etéreos alertas, e percebi um fato perturbador: havia algo de
errado com a água.
Meus pés estavam úmidos, e a faixa de água que os conectava ao fluxo do rio
Innis, que fluía invisível àqueles sem visão etérea, agora estava turva e
manchada de sangue. Instintivamente, me levantei e comecei a investigar. Quando
cheguei ao quarto do taverneiro, meu amigo Yule, ele estava, estranhamente,
varrendo o chão em plena madrugada.
— O que está fazendo, varrendo a essa hora? — perguntei, sem poder esconder
minha perplexidade.
Antes que ele pudesse responder, algo do lado de fora chamou minha atenção.
Pela janela, vi uma figura caminhando lentamente à beira do rio. Era um homem
curvado, sua pele pálida como se estivesse à beira da morte. Sua respiração
pesada e rouca, como se cada passo exigisse um esforço colossal, emitia um som
que parecia rasgar o ar. Yule, embora não pudesse ver o homem, estremeceu, como
se a própria presença daquela figura pálida tivesse um efeito visceral sobre
ele.
Olhando mais de perto, percebi o que ele era: um "afogado". O
termo que eu usava para os pobres desgraçados que pereciam sob o domínio
sombrio do rio Innis. Decidi segui-lo, com a consciência de que sua aparência
etérea não era algo que qualquer um pudesse ver. Passei a caminhar atrás dele,
as sombras da noite envolvendo cada passo meu como um manto de camuflagem.
Peguei um pano que estava pendurado sobre um barril e improvisei um capuz,
tentando parecer um bêbado qualquer, sem chamar atenção para minha verdadeira
intenção.
A figura pálida seguia a faixa de água turva com determinação, e eu sabia
que, para onde quer que ele estivesse indo, o sangue nas águas era o prelúdio
de algo terrível que estava prestes a acontecer.
**Parte 2: Kamaria e a Exaustão da Noite**
Enquanto isso, em sua casa mais afastada do tumulto de Porto Cantante,
Kamaria estava completamente exausta. Cada parte de seu corpo doía, como se
tivesse sido mergulhada em um mar de espinhos, e a fatiga física era quase
insuportável. Depois de passar a noite cuidando de Giovanni, aplicando o óleo
de Rosa d'Água em suas feridas, ela finalmente permitiu que o cansaço a
dominasse.
Giovanni agora dormia profundamente, os traços de dor suavizados pela aplicação
meticulosa do óleo. Kamaria, incapaz de se afastar dele completamente, havia
descansado a cabeça na lateral da cama, sua postura vulnerável contrastando com
a força que sempre demonstrava. O peso da responsabilidade e as emoções
conflitantes a haviam consumido, e a única coisa que conseguia fazer era
respirar lentamente, tentando se reconectar consigo mesma.
As sombras suaves do quarto, projetadas pela luz da lua, dançavam
silenciosamente nas paredes de madeira, criando uma atmosfera de paz
temporária. Mas, dentro de Kamaria, a inquietação ainda a assombrava. Enquanto
repousava, flashes da batalha recente surgiam em sua mente: **Bomani**, as
lanças, o sangue... as vísceras. A visão dos corpos empilhados fazia seu
estômago se revirar.
Ela olhou para Giovanni, o homem que agora descansava em sua cama. "Sou
uma idiota", murmurou para si mesma, os olhos semicerrados. "Toda
Innisiana é idiota como eu."
Por mais que quisesse se entregar ao sono, Kamaria sabia que a inquietação
logo a faria se levantar.
**Parte 3: O Córrego e a Água Purificadora**
Quando a exaustão física finalmente deu lugar ao incômodo emocional, Kamaria
se levantou da lateral da cama, os músculos tensos pela posição em que
estivera. Ela sabia que não poderia simplesmente repousar sem antes tentar
acalmar a tempestade que rugia dentro dela. O peso dos acontecimentos ainda se
agarrava à sua pele, e havia apenas uma solução que ela conhecia: a água.
Com passos silenciosos, ela se afastou de Giovanni, que continuava dormindo
tranquilamente, e seguiu em direção à floresta. O chamado da água era
irresistível, e a cada passo, Kamaria sentia seu corpo respondendo ao murmúrio
distante do rio Innis. Ela sabia o caminho de cor, e em pouco tempo, o som
suave do córrego encheu seus ouvidos.
Ao chegar à margem do pequeno afluente, Kamaria não hesitou. Rapidamente, se
despiu e entrou na água. O frio suave envolveu seu corpo como um abraço
acolhedor, e seus músculos começaram a relaxar instantaneamente. Ali, envolta
pelo fluxo gentil da correnteza, ela se deitou de costas, fechando os olhos e
deixando que a água fizesse seu trabalho. O peso das memórias, dos medos, e das
responsabilidades começou a se dissipar, levada pela correnteza que corria
suavemente ao redor de seu corpo.
Ela soltou um gemido de alívio, permitindo-se, pela primeira vez naquela
noite, deixar-se levar. O som da água corrente e as folhas balançando
suavemente no vento eram tudo o que ela precisava naquele momento. Sozinha, sob
o céu noturno, Kamaria sentiu que, pelo menos por um breve momento, a natureza
a estava curando.
**Parte 4: Peter e a Procissão dos Afogados**
Enquanto Kamaria encontrava alívio nas águas do córrego, Peter continuava a
seguir a figura pálida pela cidade adormecida. A intensidade dos passos do
afogado aumentava à medida que eles se aproximavam das bordas de **Porto
Cantante**. O espírito, agora à beira do porto, emitia um som confuso, um
lamento doloroso que ecoava pelas águas. Quando Peter finalmente alcançou o
afogado, viu a razão de sua angústia.
Ali, deitada na areia molhada, estava uma mulher com um longo vestido
bordado, encharcado de sangue. O vestido, originalmente branco, agora se tingia
de vermelho profundo, como se as águas do porto estivessem engolindo sua vida.
A visão trouxe à mente de Peter um conhecimento antigo. Ele se abaixou na
areia, desenhando na superfície molhada um símbolo arcano, o **Berço das Águas**,
uma gravura aprendida nos escritos de sua mãe, uma poderosa arcanista. O sigilo
conectaria os espíritos perdidos de volta ao fluxo de Innis, retardando sua
errância e trazendo-os de volta à paz.
Ele tirou sua ocarina e começou a tocar uma melodia melancólica, batizada de
**Sonata dos Afogados**. O som preenchia o ambiente com um lamento suave,
enquanto os vagantes espirituais começavam a se alinhar novamente com as águas,
caminhando de volta para o mar.
"Que as águas retomem ao seu fluxo tudo o que se perdeu", murmurou
Peter, enquanto observava a procissão espiritual ser absorvida pelo rio Innis.
O sol, ainda tímido no horizonte, começava a devolver sua luz à praia, e as
ondas calmas começaram a desfazer o círculo arcano que ele havia desenhado.
Exausto, Peter seguiu seu caminho de volta ao forte, ansioso para descansar,
mas foi surpreendido por uma visão inesperada.
**Parte 5: O Encontro de Peter e Kamaria**
Enquanto caminhava de volta ao forte, Peter decidiu parar em um pequeno
córrego para lavar o rosto e tentar afastar o cansaço. Ao se ajoelhar à margem,
ele notou uma figura deitada na água, iluminada pela luz suave da lua. Uma
mulher, com longos cabelos prateados, descansava nas águas, o corpo
parcialmente submerso e completamente despido. Peter esfregou os olhos,
acreditando que o cansaço estava começando a pregar peças em sua visão. Mas, ao
abrir sua visão etérea, percebeu que o que via era real — e mais intrigante
ainda. A mulher deitada no córrego possuía uma aura vibrante, quase líquida,
como se sua conexão com as águas fosse muito mais profunda do que qualquer
mortal poderia ter. Havia algo nela que chamava atenção além da beleza incomum.
Ela parecia ser uma com o fluxo do rio, um espírito encarnado das águas que
Peter tanto reverenciava.
Ele hesitou por um momento, não querendo assustá-la, mas também sabendo que
não podia deixá-la ali, vulnerável, exposta. Por fim, ele estalou os dedos,
criando um leve som que reverberou suavemente pelo ambiente.
— Acorde... — disse ele em um tom baixo, mas firme o suficiente para chamar
sua atenção sem parecer uma ameaça.
Kamaria abriu os olhos lentamente, ainda em um estado de tranquilidade
causado pelo contato com a água. O som de uma voz desconhecida atingiu seus
ouvidos, e, ao perceber que não estava mais sozinha, ela ergueu-se com um
sobressalto, cobrindo rapidamente o corpo com os braços enquanto os olhos
percorriam o ambiente em busca de quem a havia acordado. Seu olhar pousou em
Peter, que estava ali, de pé à beira do córrego, observando-a com uma expressão
neutra, mas curiosa.
Ela olhou para ele, furiosa e constrangida. Suas sobrancelhas se arquearam
em desagrado enquanto ela tentava cobrir o que pudesse de seu corpo nu.
— Que diabos você está olhando? — disparou ela, a voz cheia de indignação.
Peter, surpreso pela veemência dela, levantou as mãos em um gesto de paz,
seus olhos prateados mantendo um brilho calmo.
— Não estou aqui para ofender — respondeu ele com serenidade. — Apenas
queria acordá-la antes que você ficasse muito vulnerável... Afinal, este não
parece o lugar mais seguro para se dormir.
Kamaria continuou a encará-lo por um momento, incerta sobre suas intenções,
mas a aura que emanava de Peter não parecia ameaçadora. Havia algo familiar
nele, algo que lhe trazia à mente uma sensação de pertencimento, embora ela não
soubesse explicar o porquê. O desconforto inicial começou a ceder, mas ela
ainda não estava completamente relaxada.
— Quem é você? — perguntou Kamaria, seu tom mais cauteloso agora, enquanto
se levantava com cuidado, mantendo os braços ao redor de seu corpo para
cobrir-se o máximo possível.
Peter baixou as mãos e deu um passo atrás, demonstrando que não queria
invadir o espaço dela. Ele sabia que a desconfiança era natural, especialmente
depois de acordá-la de forma tão abrupta.
— Meu nome é Peter, mas alguns me chamam de D’Luffia. — Ele inclinou
levemente a cabeça em saudação. — Estou de passagem por Porto Cantante, mas meu
vínculo com o rio Innis é antigo. Você também parece conectada às águas. Quem é
você?
Kamaria estreitou os olhos ao ouvir isso. Ele a reconhecia como algo além de
uma humana comum, o que não era surpreendente, considerando que Peter possuía
uma visão aguçada para o etéreo. Ainda assim, ela não queria revelar demais,
especialmente sobre seu passado com os Lua Crescente. Ela suspirou, resignada,
e falou com um toque de sarcasmo:
— Eu sou Kamaria, uma filha de Innis, assim como você parece ser. Agora, me
faça um favor e vire-se enquanto eu me visto.
Peter deu um leve sorriso de canto, meio divertido pela firmeza dela, mas
sem querer desafiá-la. Ele assentiu e virou-se, dando-lhe privacidade enquanto
ela saía do córrego e se vestia. Kamaria pegou suas roupas, um vestido simples
de algodão que havia deixado ao lado de uma pedra, e o vestiu rapidamente.
Enquanto torcia os cabelos longos e prateados, ela observava a figura de Peter com
mais atenção. Havia algo intrigante nele, algo que despertava sua curiosidade,
mas também uma cautela natural.
Depois de se vestir, Kamaria cruzou os braços e caminhou alguns passos até
onde Peter estava, seus pés ainda molhados tocando a grama úmida.
— Então, Peter... o que exatamente está fazendo aqui, no meio da floresta,
seguindo o rastro dos afogados? — Kamaria perguntou, sem rodeios, sua voz cheia
de curiosidade, mas também de cautela.
Peter se virou para ela, seu rosto assumindo uma expressão mais séria. Ele
sabia que essa pergunta viria, e também sabia que não podia dar todas as
respostas de imediato.
— Estou investigando algo... perturbador. Os afogados estão mais ativos do
que o normal, e eu os segui até o porto. Mas o que vi lá... não foi fácil de
digerir. — Ele fez uma pausa, sua voz adquirindo um tom mais sombrio. — Há
sangue na água, Kamaria. Algo está profundamente errado com o fluxo de Innis, e
temo que o que vi esta noite seja apenas o começo.
Kamaria franziu o cenho, os olhos âmbar se estreitando enquanto ouvia suas
palavras. Sangue na água... a menção disso fez seu estômago revirar. Seu
próprio vínculo com o rio Innis fazia com que sentisse as perturbações nas
águas, mas o que Peter estava sugerindo era algo maior, algo que ela ainda não
havia percebido completamente.
— E o que você pretende fazer? — Kamaria perguntou, sua voz carregada de
desconfiança e preocupação.
Peter suspirou, seus ombros ligeiramente caídos em cansaço.
— Não sei ao certo... Ainda estou tentando entender a extensão do problema.
Mas eu preciso voltar ao forte para me recompor. Precisamos de respostas, e
rápido.
Kamaria assentiu lentamente, compreendendo a gravidade da situação. Ela
também sentia o chamado das águas, algo dentro de si já sabia que as coisas não
estavam certas. Mas, acima de tudo, ela precisava proteger aqueles que amava —
Giovanni, que ainda estava vulnerável, e Zaki, cuja ausência era preocupante.
Ela não podia simplesmente abandonar a situação com ambos.
— Eu entendo, Peter — disse ela, com uma voz mais suave, mas determinada. —
Mas não posso ir com você agora. Há pessoas que precisam de mim aqui.
Giovanni... ele ainda não está recuperado, e Zaki... — Ela parou, sem querer
revelar muito. — Existem responsabilidades que não posso deixar de lado.
Peter olhou para ela com compreensão. Ele sabia o peso de cuidar dos outros,
de ser responsável por aqueles que amava.
— Eu entendo. — Ele deu um leve sorriso, reconhecendo a seriedade da
situação. — Mas precisamos nos encontrar em Porto Cantante. Acredito que haverá
um funeral em breve para aqueles que se foram, e eu estarei lá. Se puder,
venha. Precisamos descobrir o que está acontecendo com o fluxo de Innis antes
que seja tarde demais.
Kamaria hesitou por um momento, pensando em tudo o que precisaria fazer antes
de poder se encontrar com Peter. Mas ela sabia que ele estava certo. O
desequilíbrio nas águas do rio era algo que não poderia ser ignorado. Ela olhou
para ele, com os olhos âmbar determinados.
— Eu estarei lá, Peter. No funeral. Nos encontraremos em Porto Cantante.
Peter assentiu, satisfeito com a resposta dela.
— Até lá, Kamaria. Cuide de si... e dos seus.
Com isso, ele se virou e começou a caminhar pela floresta, desaparecendo
lentamente entre as árvores, a luz da lua iluminando seu caminho. Kamaria ficou
parada por alguns instantes, sentindo a brisa suave e o som do córrego que a
envolvia. Ela sabia que o tempo estava contra eles, mas antes de poder
enfrentar o que quer que estivesse perturbando o rio, precisaria garantir que
aqueles sob seus cuidados estivessem a salvo.
Ela respirou fundo, sentindo a força da água em seus pés, e se virou,
caminhando de volta para sua casa. Giovanni e Zaki precisariam dela — e, em
breve, Peter também.
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