O Teste das Águas Abissais

 

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Nas Profundezas de Innis

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O caminho até o templo dos abissais parecia interminável para Kamária. Cada batida de sua cauda contra as águas pesadas aumentava a pressão sobre seu corpo, como se o rio estivesse ciente de seu fardo e tentasse testá-la. Ela estava acompanhada por Bomani, Tharos, Elethis, e Adhara, todos nadando em silêncio. O ar de concentração era palpável, mas Kamária sentia uma tensão crescente, especialmente entre ela e Bomani. Ele não havia dito nada desde o início da jornada, mas seus olhares furtivos e a energia que irradiava de seu corpo falavam muito.

 

Kamária tentou manter a mente focada. Enquanto nadava, sua mente viajava para os eventos recentes — as palavras dos sacerdotes e o julgamento dos seus pais. O exílio, o sacrifício que havia feito e o desafio que agora enfrentava para redimir sua conexão com a deusa Innis. Tudo parecia se fundir em uma correnteza de emoções. Será que eles tinham razão? Ela questionava silenciosamente. Será que minha ligação com Innis foi realmente enfraquecida?

 

Enquanto nadava mais profundamente, Kamária se lembrou de sua barganha com Astar. O acordo que ela fez não apenas a conectou ao misterioso ser, mas também a lançou em uma espiral de dúvidas. E se essa aliança me afastar ainda mais de Innis? O medo ressoava dentro dela. Ela havia aceitado o poder e a influência de Astar em troca de segurança, mas agora se questionava se havia cometido um erro. Havia momentos em que a escuridão da presença de Astar parecia mais próxima do que a luz de Innis.

 

As palavras dos sacerdotes ecoavam em sua mente. Eles haviam alertado sobre um "caminho mais escuro". Ela sabia que não era uma simples advertência — era um presságio do que estava por vir. Mas, apesar disso, Kamária sentia algo diferente. Havia uma dualidade dentro dela, uma força ainda não totalmente compreendida que poderia guiá-la, se ela conseguisse encontrar o equilíbrio.

 

O templo dos abissais finalmente surgiu à vista, as colunas gigantescas de pedra erguidas como guardiãs antigas. A arquitetura natural era impressionante: uma combinação de pilares cobertos de musgo, formações de corais luminescentes, e criaturas marinhas que flutuavam, iluminando o ambiente com suas bioluminescências. As águas ao redor do templo tinham um tom mais escuro, profundo, como se algo muito antigo residisse ali.

 

Ao redor do templo, figuras moviam-se lentamente — os sacerdotes abissais. Suas formas misturavam-se com as sombras e a luz cintilante do fundo do rio, tornando-os ainda mais etéreos e misteriosos. Suas peles translúcidas e os olhos grandes e vazios reforçavam o medo ancestral que os representantes sentiam. No centro, um altar natural de pedra coberta de musgo brilhava levemente, emitindo uma aura sagrada.

 

Adhara, do Clã da Lua Cheia, parecia impressionada com a grandiosidade do templo. Seu olhar de admiração não escondia o nervosismo crescente, enquanto Tharos, do Clã da Lua Minguante, estava tenso, pronto para agir a qualquer sinal de perigo. Elethis, do Clã da Lua Nova, flutuava serenamente, como se fosse parte da água. Kamária trocou olhares rápidos com eles, sentindo o mesmo peso e antecipação que os demais.

 

Os sacerdotes, com seus corpos ondulantes, aproximaram-se lentamente. O líder, uma figura com escamas negras e olhos profundos como abismos, parou diante de Kamária. Sua presença era avassaladora, e suas palavras ecoaram na mente de Kamária como se fossem sussurros antigos.

 

— Por que busca a Flor de Innis, filha exilada, quando sua conexão com a deusa foi rompida?

 

Kamária, embora abalada pela acusação, sabia que não podia vacilar. Ela fechou os olhos por um momento, sentindo o cântico de Innis fluir através dela, e então abriu os olhos, respondendo com uma firmeza que surpreendeu até a si mesma.

 

— Minha conexão com Innis nunca foi rompida. Eu a honro todos os dias, mesmo fora do clã. Estou aqui porque sei que a comunhão com ela vai além de títulos e clãs. Sou uma filha de Innis, e sempre serei.

 

As palavras de Kamária reverberaram pelas águas, e ela sentiu uma onda de aprovação silenciosa. Mas havia algo mais. Enquanto os sacerdotes a observavam, Kamária teve uma sensação de que estavam lendo muito mais do que suas palavras — estavam sondando sua alma, vasculhando suas memórias, seu exílio, suas escolhas, e até mesmo sua aliança com Astar. Isso a fez estremecer, mas ela não recuou.

 

Os sacerdotes recuaram, permitindo que os representantes avançassem em direção à câmara onde as flores de Innis cresciam. A travessia era calma no início, mas logo uma mudança na corrente alertou Kamária. De uma fenda nas rochas, uma criatura abissal emergiu. Suas escamas negras e olhos vermelhos a fixaram com fome, e seu corpo serpenteava ameaçadoramente em direção ao grupo.

 

Tharos e Adhara recuaram rapidamente, suas expressões de choque e temor evidentes enquanto a criatura abissal serpenteava em direção ao grupo. Mas Kamária permaneceu imóvel. Sabia que essa era sua prova. Ela havia enfrentado outros desafios antes, mas nada comparado a isso. A fera diante dela não era apenas uma manifestação física de perigo; era um teste espiritual, uma prova de sua força e de sua comunhão com Innis.

 

Ela ergueu a mão com precisão, sentindo a magia da água ao seu redor responder ao seu comando. Em um movimento fluido, murmurou um encantamento antigo, conjurando rapidamente uma coluna de gelo que se formou a partir da umidade circundante, cristalizando-se diante da fera. O gelo brilhou com uma luz azulada, cortando a escuridão, e a criatura colidiu com ele, sendo brevemente repelida. Mas Kamária sabia que a magia de ataque, embora impressionante, não seria suficiente para deter uma besta tão poderosa e antiga.

 

Enquanto a criatura abissal se aproximava, suas escamas negras e os olhos vermelhos brilhantes tornavam-se cada vez mais intimidadores. Kamária respirou fundo, sentindo a água ao seu redor como uma extensão de seu próprio corpo. Era como se a magia fluísse não apenas de suas mãos, mas de cada célula do seu ser. O rio Innis não era um obstáculo, era seu aliado, pulsando em harmonia com ela.

Diferente dos outros representantes, Kamária não precisava lutar para controlar os elementos. Ela sentia que a água, o vapor e o gelo já faziam parte de sua essência. Cada gota ao seu redor era uma ferramenta à sua disposição, cada corrente de vapor, uma extensão de sua alma. Ao contrário de muitos, que invocavam a magia com esforço e precisão, Kamária apenas se rendia ao fluxo natural. Ela não dominava a água – ela se tornava a água.

Enquanto murmurava um encantamento em voz baixa, a temperatura ao redor de Kamária começou a cair. Pequenas partículas de vapor se condensaram, transformando-se em cristais de gelo que brilhavam à luz difusa que penetrava nas profundezas. O gelo formava uma barreira translúcida à sua frente, não com brutalidade, mas com a elegância de uma escultura que se moldava com o ambiente. A água ao seu redor respondia instantaneamente aos seus comandos, formando e dissolvendo-se com uma suavidade incomum.

No entanto, quando a criatura investiu contra a barreira de gelo, Kamária percebeu que força bruta não seria suficiente. O impacto foi violento, o gelo tremeu, e rachaduras começaram a se formar. Seu coração acelerou, mas em vez de ceder ao pânico, ela mergulhou mais fundo dentro de si mesma, procurando o que a tornava diferente.

Innis me deu essa força, ela pensou. Mas não é a força de dominar, é a força de fluir.

 

Ela fechou os olhos, relaxando o corpo, e deixou de tentar resistir. Em vez de erguer mais barreiras ou atacar com gelo afiado, Kamária decidiu se render à essência da água.

 

Com essa lembrança em mente, Kamária parou de lutar contra a criatura. Ela fechou os olhos, relaxou o corpo e permitiu que a magia de Innis fluísse por suas veias. Sentiu o poder da água ao seu redor, o pulsar rítmico do rio, e sincronizou sua respiração com ele. Cada inspiração era uma fusão com a correnteza, e cada expiração era uma liberação da resistência.

 

Kamária estendeu as mãos, sentindo a comunhão profunda com a deusa. O fluxo da água ao redor dela mudou. O rio não era mais apenas um ambiente hostil, mas uma extensão de seu próprio corpo e alma. Ela visualizou o fluxo eterno da água, moldando-se às curvas da terra, envolvendo, protegendo e, acima de tudo, aceitando.

 

Ao abrir os olhos lentamente, ela percebeu que a criatura havia parado. Seus olhos vermelhos, antes cheios de raiva e ameaça, agora observavam Kamária com uma curiosidade profunda, como se estivessem em sintonia. O vínculo que se formou entre eles era silencioso, mas real. Kamária e a criatura faziam parte do mesmo fluxo, não como adversários, mas como dois seres que reconheciam a mesma fonte de poder. Lentamente, a criatura recuou, retornando às sombras de onde havia emergido, deixando Kamária seguir em frente.

 

Com a fera agora fora de seu caminho, Kamária seguiu adiante, nadando com calma em direção à luz dourada que piscava suavemente nas profundezas. A flor de Innis, tão delicada e luminosa, flutuava como uma joia divina, emitindo uma aura de serenidade e poder. Mas Kamária sabia que não podia simplesmente colher a flor. Era necessário um ritual, uma permissão formal da própria deusa para tomar algo tão sagrado.

 

Kamária parou a poucos metros da flor de Innis, a luz dourada brilhando suavemente ao seu redor. A água, que até então parecia pesada, tornou-se quase leve, como se o próprio rio estivesse aguardando a comunhão entre a filha exilada e a deusa. A flor flutuava à sua frente, bela e delicada, pulsando em sincronia com as batidas do coração de Kamária, como se a vida dentro da flor estivesse esperando ser tocada pela magia divina.

 

Ela fechou os olhos e começou a cantar. A melodia que ecoava de seus lábios era suave e ancestral, carregada de séculos de devoção e sabedoria. As palavras, passadas de geração em geração no Clã da Lua Crescente, agora fluíam de Kamária como um cântico pessoal, um pedido direto à deusa Innis para permitir que ela tomasse aquela dádiva sagrada.

 

No momento em que o primeiro verso deixou seus lábios, Kamária sentiu uma mudança sutil, mas profunda. A água ao seu redor, antes densa e silenciosa, começou a vibrar levemente, como se respondesse ao chamado divino. O cântico reverberava nas profundezas, ecoando nas correntes e nas pedras antigas. Conforme Kamária cantava, a temperatura da água ao seu redor subia, e ela sentiu um calor suave envolvendo seu corpo, não como uma mudança física, mas uma manifestação do toque da deusa.

 

A presença de Innis não era apenas uma sensação distante; era palpável, tangível. O calor cresceu de dentro para fora, começando no peito de Kamária, expandindo-se até suas mãos, que lentamente se erguiam em reverência à deusa. Sua pele formigava, cada célula de seu corpo parecia despertar, como se a magia fluísse diretamente através dela, carregando o poder e a sabedoria de Innis. Kamária se tornou uma extensão da vontade divina, um canal puro pelo qual a energia da deusa fluía.

 

Quando os versos de seu cântico atingiram o ponto alto, Kamária sentiu a luz da flor pulsar mais forte, respondendo ao seu pedido. A energia que ela evocava ao cantar não era apenas sua — era como se a própria Innis cantasse através dela. A conexão era completa. Nesse momento, Kamária não era apenas uma filha exilada buscando redenção. Ela era uma parte do ciclo eterno da deusa, uma filha retornando ao seu lugar de direito.

 

A luz dourada da flor intensificou-se, banhando Kamária em um brilho cálido e reconfortante. O calor envolvia seus braços, seus ombros, sua cabeça, descendo por seu corpo até os pés, que ainda flutuavam levemente na água. Não era apenas um calor físico, mas uma sensação de total aceitação, como se a deusa estivesse afirmando sua presença, sua força e sua devoção. O rio Innis, as águas abissais, tudo parecia se curvar em respeito à comunhão sagrada entre Kamária e a deusa.

 

Kamária sentiu uma leve pressão em seu coração, uma pulsação harmoniosa que seguia o ritmo de seu cântico. O tempo parecia suspenso, como se as águas tivessem parado para testemunhar aquele momento de pura conexão divina. Seus sentidos ficaram mais aguçados — ela podia ouvir o sussurro da água, sentir cada gota ao seu redor como uma extensão de sua pele, e, ao mesmo tempo, sentia a flor pulsar de vida, uma vida que a chamava, pedindo para ser colhida por alguém digno.

 

— Deusa Innis, sou tua filha. Peço tua bênção para seguir o caminho que traçaste. Permita-me colher essa flor como prova de minha devoção e força, para que tua vontade seja feita em mim — sussurrou Kamária, sua voz reverente e calma, como se fosse uma prece diretamente para o coração da deusa.

 

Ao dizer essas palavras, algo mudou. A pressão em seu coração tornou-se uma expansão, como se sua alma estivesse crescendo, preenchendo não apenas seu corpo, mas também o espaço ao seu redor. Ela sentiu uma paz absoluta, um entendimento claro de que a deusa estava presente e aceitando seu pedido. A presença de Innis não era mais uma força externa; ela estava dentro de Kamária, brilhando em cada fibra de seu ser.

 

Quando ela estendeu a mão para a flor, sentiu a resistência suave das águas, mas também a permissão sagrada da deusa. Com o toque delicado de seus dedos, a flor de Innis emitiu um último brilho intenso, como um farol divino, antes de suavemente permitir que Kamária a colhesse. A flor se deitou em sua palma, sua luz dourada agora fundida com a energia de Kamária.

 

No momento em que a flor repousou em sua mão, Kamária sentiu uma onda de gratidão, de plenitude. A conexão com Innis, que ela temera ter sido rompida, estava mais forte do que nunca. Não havia mais dúvidas em seu coração — ela era uma filha de Innis, amada e aceita. O calor divino, o brilho da flor, e o cântico que ainda reverberava em suas veias eram prova suficiente.

 

Ao abrir os olhos, Kamária percebeu que as águas ao seu redor haviam se tornado cristalinas, iluminadas pela luz da flor. O templo abissal, que antes parecia sombrio e distante, agora parecia acolhedor, um santuário onde ela encontrara redenção. E no fundo de sua alma, Kamária sabia que, por mais difíceis que fossem as próximas etapas de sua jornada, ela sempre carregaria consigo o toque da deusa e a certeza de que era merecedora de sua bênção.

 

A presença de Innis ainda permanecia com ela enquanto se virava e começava sua ascensão de volta à superfície, a Flor de Innis em suas mãos, sua alma em paz. A jornada havia sido transformadora, e, ao emergir, ela sabia que jamais seria a mesma.

 

O ritual estava completo.

 


Com a flor de Innis em mãos, Kamária começou sua jornada de volta ao templo. O caminho de volta era diferente agora. Havia uma sensação de paz e sacralidade no ambiente, como se o próprio rio reconhecesse a transformação que havia ocorrido dentro dela. Quando ela emergiu das profundezas diante dos sacerdotes, todos a observaram em silêncio. Eles sabiam que ela havia passado no teste, mas também reconheciam que algo mais profundo havia acontecido.

 

Bomani, Elethis, e Tharos ainda estavam distantes, buscando suas próprias flores. Kamária foi a primeira a completar o teste. Segurando a flor, ela sentiu o peso das palavras dos sacerdotes, o aviso de que um destino mais sombrio a aguardava. Talvez estivesse relacionado à sua barganha com Astar, ou talvez fosse algo maior — algo que ainda não podia entender.

 

Enquanto o silêncio reinava ao seu redor, Kamária sabia que essa jornada nas profundezas do rio Innis era apenas o começo de algo muito maior. Ela havia demonstrado seu poder como feiticeira e sua conexão inabalável com Innis, mas o futuro permanecia incerto.

 

A superfície do rio Innis brilhava com a luz suave da lua enquanto Kamária nadava em direção às margens. Cada movimento seu era calmo e calculado, a flor de Innis protegida cuidadosamente em suas mãos. O peso das águas começava a diminuir à medida que ela se aproximava da superfície. Quando finalmente emergiu, a brisa noturna tocou seu rosto, trazendo consigo o cheiro fresco da terra e da vegetação ao redor.

 

Ela ergueu a cabeça, respirando profundamente o ar fresco, seus olhos imediatamente procurando por Giovanni e os outros. Quando seus pés tocaram o solo raso, ela caminhou com firmeza, sentindo a força renovada que a jornada nas profundezas havia lhe concedido. A Flor de Innis, em suas mãos, brilhava suavemente, como se ainda estivesse em comunhão com a própria deusa.

 

Ao chegar às margens, foi recebida primeiro pelo olhar ansioso e aliviado de Giovanni. Ele correu até ela, sem hesitar, e a envolveu em um abraço apertado. O contato foi tão suave quanto poderoso, e Kamária permitiu-se um momento de descanso em seus braços, sentindo o calor de sua presença.

 

— Você conseguiu — murmurou Giovanni, sua voz carregada de emoção e alívio. — Eu sabia que você conseguiria.

 

Korin, com um sorriso que misturava orgulho e alívio, se aproximou, batendo levemente nas costas de Giovanni antes de se inclinar para Kamária.

 

— Isso sim é o que eu chamo de trabalho bem feito, garota — disse Korin, com seu tom rude, mas afetuoso. — Sabia que você daria conta.

 

Teath permaneceu em silêncio, mas seus olhos, sempre tão calmos e profundos, refletiam o respeito que ele sentia. Ele pousou a mão no ombro de Kamária, um gesto simples, mas que transmitia apoio. Ao lado de Teath, Peter sorriu suavemente, tocando sua ocarina em uma melodia suave, como se estivesse celebrando a vitória de Kamária em seu próprio estilo místico.

 

— A Flor de Innis... — Peter disse, sua voz sussurrante, — é mais bela nas mãos certas. Parabéns, Kamária. Sua comunhão com a deusa foi sentida até nas águas mais profundas.

 

Eles a abraçaram, primeiro um, depois outro, e o peso da jornada parecia se dissipar com o calor de seus amigos ao redor. Kamária permitiu-se sorrir, sentindo a ternura daquele momento, algo que lhe trouxe paz depois de tanta tensão. Ao longe, ela avistou Athina e Sol, que observavam de uma distância respeitosa. Ambos sorriram para ela — Athina com seu olhar calculista, mas contente, e Sol, sempre enigmático, com um leve aceno de cabeça. Eles não se aproximaram, mantendo-se como observadores distantes, mas o respeito e o reconhecimento em seus olhares eram inegáveis.

 

Mas enquanto o momento de celebração se desenrolava ao seu redor, Kamária sentiu algo mais. Algo que não estava presente na comunhão com Innis. Era um peso diferente, uma presença que fazia sua pele arrepiar levemente. De relance, ao longe, nas sombras projetadas pela luz da lua, ela o viu.

 

Ele estava parado à distância, observando-a com olhos que pareciam cintilar com um brilho enigmático. A escuridão ao redor dele se fundia com o ambiente, tornando-o quase indistinguível das sombras. Aquele sorriso... um sorriso leve, quase imperceptível, mas cheio de satisfação. Astar não precisava dizer nada; sua presença ali era o suficiente para lembrar Kamária da barganha que fizera. A presença sombria dele se erguia como um lembrete de que, por mais que tivesse conseguido a flor e reafirmado sua conexão com Innis, sua jornada estava longe de ser simples.

 

A dualidade entre a luz dourada da flor e a sombra projetada por Astar tornou-se palpável. Kamária não podia ignorar o eco sutil da barganha que reverberava em sua alma, mesmo enquanto seus amigos a envolviam com amor e aprovação. A comunhão com Innis a havia fortalecido, mas Astar a observava com a mesma intensidade, como se aquele momento de glória também fosse parte de seu jogo.

 

E, naquele instante, Kamária percebeu que, embora tivesse superado as provas físicas e espirituais, a luta interna entre sua devoção à deusa e sua aliança com Astar seria sua verdadeira batalha.

 

Com um último olhar para Astar, que desapareceu nas sombras com a mesma sutileza com que surgira, Kamária voltou a atenção para seus amigos e para a cerimônia que se seguiria, com os sacerdotes examinando as flores trazidas pelos representantes. Ela sabia que o caminho à frente seria cheio de desafios, mas também sabia que estava pronta para enfrentá-los — de frente, com a luz de Innis ao seu lado e a escuridão de Astar sempre à espreita.

 

Enquanto o grupo compartilhava o alívio da vitória, as águas do rio se agitaram novamente. Tharos, do Clã da Lua Minguante, emergiu, sua expressão carregada de frustração. Ele segurava sua flor com firmeza, mas a tensão em seus ombros revelava sua decepção por não ter sido o primeiro a voltar. Ele lançou um olhar rápido para Kamária, e seus olhos, apesar da frustração, continham uma centelha de respeito silencioso. Ele não precisava dizer nada — seu reconhecimento estava claro na maneira como ele a olhou. Kamária respondeu com um leve aceno de cabeça, reconhecendo a troca de respeito entre eles.

 

Logo após Tharos, Elethis, do Clã da Lua Nova, surgiu das águas. Sua respiração era pesada, e ela parecia exausta, mas havia uma calma em seus movimentos. Elethis olhou para Kamária com uma expressão serena, um respeito silencioso refletido em seus olhos. Embora soubesse que não havia sido a primeira, ela respeitava profundamente a jornada de Kamária e a força que a exilada demonstrara. Em um gesto quase imperceptível, Elethis sorriu de leve, um sinal de admiração sincera.

 

Adhara, do Clã da Lua Cheia, emergiu por último, sua expressão marcada por uma mistura de cansaço e amargura. A frustração era visível em cada traço de seu rosto, mas, ao olhar para Kamária, algo mudou. Adhara, que sempre havia carregado o peso de seu clã com tanto orgulho, percebeu que Kamária, a exilada, havia vencido aquela prova de forma incontestável. Seus olhos, antes endurecidos, suavizaram por um momento, reconhecendo a conquista de Kamária com um aceno quase imperceptível. Embora frustrada, havia um respeito mudo que Adhara não conseguia ignorar.

 

Finalmente, Bomani emergiu das águas com uma fúria palpável. Seus punhos estavam cerrados, e seus olhos ardiam de raiva ao ver Kamária já em pé, cercada por seus amigos, a flor de Innis brilhando com uma luz intensa em suas mãos. Bomani sempre acreditara que a exilada não tinha lugar ali, e vê-la triunfar era um golpe em seu orgulho. Ele apertou os lábios e desviou o olhar, tentando esconder a intensidade de sua frustração. Kamária, porém, não recuou. Ela encontrou os olhos de Bomani com um olhar firme e desafiador. Seus olhos, cheios de determinação e força, transmitiram a mensagem clara: Eu sou digna. Sou mais forte do que você imaginava.

 

Aqui está a parte revisada para incluir uma finalização mais detalhada da jornada de Kamária, com a avaliação dos sacerdotes, as reações dos outros representantes e um momento de reflexão de Kamária sobre seu futuro e seu lugar entre os clãs:

 

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A atmosfera ao redor da praia estava carregada de expectativa quando os sacerdotes se aproximaram de Kamária e dos outros representantes. O brilho suave da Flor de Innis em suas mãos parecia quase uma extensão de seu ser agora, pulsando com uma energia sagrada que conectava diretamente à deusa. Kamária respirou fundo, ainda sentindo o toque do abraço espiritual de Innis, enquanto esperava pela avaliação final.

 

Os sacerdotes começaram com uma reverência silenciosa, seus olhos antigos examinando as flores com um cuidado quase ritualístico. Primeiro, Adhara e Tharos tiveram suas flores avaliadas. Adhara mantinha o olhar distante, mas havia uma aceitação serena em sua postura. Ela sabia que Kamária a havia superado, mas não havia ressentimento, apenas um respeito silencioso pela vitória da exilada.

 

Tharos, por outro lado, mantinha o rosto tenso, sua frustração evidente. Ele apertou os lábios enquanto os sacerdotes sussurravam entre si, e Kamária podia sentir a leve vibração de decepção emanando dele. No entanto, mesmo Tharos, com toda a sua rigidez, não podia negar o respeito que sentia por Kamária. Ela havia se provado, e a luta dela falava mais alto do que as palavras jamais poderiam.

 

Quando os sacerdotes finalmente chegaram a Bomani, o contraste era gritante. O rosto dele estava marcado pela raiva mal contida, os olhos fixos em Kamária com um desprezo que parecia queimar sua pele. Ele se mantinha rígido, seus punhos cerrados, e a tensão em seus ombros deixava claro que a derrota para a exilada era um golpe em seu orgulho. O brilho da flor de Bomani, embora notável, parecia perder força diante da intensidade da que Kamária segurava.

 

Kamária sustentou o olhar de Bomani, mas não havia ódio em seus olhos. Pelo contrário, havia um entendimento silencioso, uma certeza de que aquela vitória era dela por mérito, não por sorte. E isso só parecia inflamar a fúria de Bomani ainda mais.

 

Os sacerdotes, após um longo silêncio, finalmente ergueram-se em direção à flor de Kamária. O líder, uma figura imponente com escamas iridescentes e olhos profundos como as águas abissais, segurou a flor com uma reverência maior do que demonstrara para qualquer outro representante.

 

— A Flor de Innis colhida por Kamária brilha com a força mais pura, — ele declarou, sua voz carregada de autoridade. — Sua comunhão com a deusa é inegável, e sua flor é a mais perfeita em conexão com Innis. Ela prova não apenas sua força como feiticeira, mas também seu espírito em sintonia com os desejos da deusa.

 

Essas palavras ecoaram pela praia como um veredito divino. Os outros sacerdotes assentiram, confirmando a declaração com murmúrios de aprovação. O veredito era claro: Kamária havia superado todos.

 

Bomani não conseguiu mais conter sua fúria. Seu rosto estava contorcido de raiva, mas ele sabia que não poderia contestar a decisão dos sacerdotes. Ele deu um passo para trás, afastando-se da cerimônia, a derrota visível em cada movimento. Ele não disse uma palavra, mas o desprezo que ele sentia por Kamária era evidente.

 

Kamária observou Bomani se afastar, sentindo o peso do momento. Havia uma satisfação silenciosa em seu triunfo, mas também uma aceitação de que esse era apenas o começo. Ela sabia que sua vitória não a absolvia completamente aos olhos do clã. Ela ainda era a exilada, e muitos, como Bomani, jamais a aceitariam de volta.

 

Adhara e Tharos, por outro lado, mantiveram-se em silêncio respeitoso. Adhara, apesar de sua própria derrota, deu um leve aceno de cabeça em reconhecimento à vitória de Kamária. Era um gesto simples, mas carregado de significado. Tharos, ainda contido, cruzou os braços, mas havia algo em sua postura que sugeria uma aceitação relutante. Kamária sentiu que, mesmo que houvesse tensão entre eles, ela havia ganhado o respeito de todos, exceto Bomani.

 

Enquanto os sacerdotes finalizavam a cerimônia, Kamária deixou seus pensamentos vagarem por um breve momento. Ela olhou para o céu noturno, onde a lua brilhava intensamente, refletida nas águas calmas do rio Innis. A sensação de vitória trazia consigo uma mistura complexa de emoções. Ela havia provado sua força e reconectado-se com a deusa, mas também sentia que uma sombra pairava sobre seu futuro.

 

A barganha com Astar ainda pairava em sua mente, um eco sombrio que não desaparecia, mesmo com a luz da flor de Innis em suas mãos. A presença dele, aquela visão fugaz de um sorriso satisfeito, permanecia. Kamária sabia que a vitória de hoje era apenas um passo em uma jornada muito maior e mais perigosa. O futuro diante dela não era apenas de redenção, mas de enfrentamento com a própria escuridão que Astar representava.

 

Ela suspirou profundamente, permitindo-se um momento de tranquilidade, rodeada por Giovanni, Korin, Teath, e Peter, que a envolviam com apoio incondicional. Mas a certeza de que os desafios reais ainda estavam por vir não a abandonava.

 

Ela olhou para a flor em suas mãos, sentindo o calor sagrado que emanava dela, e murmurou para si mesma:

 

— Estou pronta para o que vier.

 

Com essa última reflexão, Kamária sabia que, por mais que estivesse em paz naquele momento, o caminho à frente seria longo, cheio de batalhas — tanto externas quanto internas. Mas ela não estava mais sozinha. Tinha o apoio de seus amigos, a força de Innis em seu coração, e uma determinação renovada. E, acima de tudo, estava pronta para encarar o que quer que Astar e o destino estivessem preparando para ela.

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