O Julgamento das Marés

 

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Nas águas profundas, onde o sangue e o amor se encontram, o passado e o futuro colidem com a fúria de um mar revolto.

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A lua iluminava o caminho à frente de Kamária, derramando sua luz prateada sobre o terreno úmido. A trilha que levava à clareira era sinuosa e antiga, como os segredos que ela própria carregava em seu coração. O som distante do rio Innis sussurrava, uma melodia familiar que agora parecia ter perdido seu significado. Cada passo que ela dava trazia consigo memórias do tempo que passara longe, do exílio que ela mesma escolhera. As folhas e galhos sob seus pés criavam um ritmo suave, um prelúdio para o encontro inevitável.

 

A clareira estava à frente, envolta em sombras, como um espaço que aguardava por um julgamento há muito adiado. Kamária podia sentir o peso do momento se aproximando, e cada passo parecia arrastá-la para dentro de uma tempestade de emoções. Ela não via seus pais há trinta anos — tempo suficiente para que as feridas entre eles se tornassem profundas, quase irreparáveis.

 

Quando seus olhos finalmente capturaram a figura de seus pais, o ar ao redor dela pareceu congelar. Nia estava lá, em pé, imponente como sempre, vestida com suas tradicionais vestes de escamas prateadas que refletiam a luz da lua. Seu rosto, austero, trazia as marcas de uma vida dedicada ao clã e à liderança. Ao lado dela, Omu, seu pai, estava com o semblante sério, os olhos fixos em Kamária, mas sua postura mais rígida demonstrava a seriedade da ocasião. A presença dele era inegável, embora não fosse ele quem ditava os rumos do clã.

 

Kamária parou a alguns metros de distância. O ar estava pesado, carregado de coisas não ditas, como se as próprias árvores ao redor segurassem a respiração. Ela não era mais a filha que partira, tampouco era a jovem que buscava a aprovação de seus pais. Agora, ela era algo novo, algo que seus pais talvez não reconhecessem.

 

Nia foi a primeira a quebrar o silêncio, sua voz ecoando com a autoridade de quem sempre esteve no comando.

 

— Trinta anos se passaram, Kamária. Trinta anos desde que você nos virou as costas, desde que abandonou seu clã, seu sangue — disse Nia, cada palavra como um golpe preciso. — E agora retorna, não por vontade própria, mas porque não há mais como fugir das suas escolhas.

 

Kamária respirou fundo, sentindo a dor naquelas palavras. Mas havia algo mais. Um ressentimento que pairava no ar, uma ferida antiga que ela sabia que precisaria enfrentar.

 

— Não foi uma escolha fácil — respondeu Kamária, mantendo o tom firme. — Eu precisava encontrar respostas que vocês não me dariam. E naquele tempo, o clã estava mais preocupado com manter tradições do que com a verdade.

 

Omu, até então em silêncio, deu um passo à frente. Seu olhar era severo, mas havia algo nele que indicava mais do que mera reprovação. Ele parecia estar lutando com as próprias emoções, tentando equilibrar a raiva com a compreensão.

 

— Tradições são o que mantêm o clã forte, Kamária. São o que nos preserva. Você desapareceu, como se não tivesse nenhum laço conosco. E agora volta para desafiar tudo o que representamos? — Ele cruzou os braços, seu tom cheio de autoridade, mas com um traço de frustração.

 

Nia, entretanto, não parecia abalada pela explicação de Kamária. Seus olhos perfuravam a alma da filha como se pudessem desvendar todas as razões escondidas. Ela sempre fora uma líder implacável, e Kamária sabia que o julgamento de sua mãe não seria facilmente contornado.

 

— Você não desapareceu apenas do clã, Kamária — disse Nia, com a voz fria. — Você se apagou de nós. De mim. Como se eu, sua própria mãe, fosse irrelevante para o que buscava. Eu, que te dei tudo. O que você encontrou nesses anos? No que acreditou ser mais importante do que o próprio clã?

 

Kamária sentiu o peso da acusação em cada palavra. A dor no olhar de Nia era evidente, embora ela a mascarasse com sua habitual severidade. Por um momento, Kamária vacilou, mas logo recuperou o controle. Ela sabia que não podia deixar a culpa dominá-la.

 

— Eu encontrei respostas além do que as tradições nos ensinam. Encontrei algo que vocês nunca aceitariam — disse Kamária, sem rodeios. — O mundo é maior do que o clã, maior do que as regras que seguimos cegamente. Vocês me ensinaram a seguir a deusa, mas eu vi algo além. Algo que vocês se recusam a enxergar.

 

O silêncio caiu sobre eles novamente, mas dessa vez era Nia quem estava profundamente afetada. Ela respirou fundo, tentando controlar as emoções que pareciam ameaçar transbordar. Então, seu olhar endureceu, e ela continuou.

 

— E o que você viu, Kamária? — perguntou Nia, sua voz gélida. — Um humano? Um ser que não é digno de caminhar entre nós?

 

Kamária fechou os olhos por um breve segundo. Giovanni. Ele era a peça central de todo aquele conflito, o símbolo da rebeldia que seus pais tanto temiam. Mas não era apenas isso. Ele representava algo que o clã da Lua Crescente não compreendia — a possibilidade de que o amor e a conexão com o outro não precisavam ser uma fraqueza.

 

— O humano que você despreza me mostrou algo que vocês nunca me mostraram — disse Kamária, sua voz agora mais forte, quase desafiadora. — Ele me mostrou o valor da escolha. Vocês só me ofereceram um caminho, e ele me deu a liberdade de trilhar o meu. E foi isso que vi nesses trinta anos: a liberdade de não ser o que vocês querem que eu seja.

 

Omu estreitou os olhos, seu corpo tenso com o embate que se desenrolava.

 

— Você acredita que uma união com um humano irá fortalecer o clã? — A voz de Omu era cortante, mas não havia desprezo, apenas a frustração de um pai que tentava entender. — Você acredita que isso é o que a deusa quer para nós?

 

Kamária hesitou por um breve momento, e nessa hesitação, percebeu que o amor por Giovanni não apagava os laços com o clã, mas os tensionava de uma forma que talvez nunca pudesse ser desfeita. Ela sabia que as palavras que diria agora poderiam determinar o destino de todos.

 

— Eu acredito que a deusa quer evolução. Que ela quer que olhemos além do que conhecemos. E acredito que minha união com... o humano... não é uma fraqueza, mas uma prova de que podemos ser mais do que somos agora.

 

Nia balançou a cabeça lentamente, como se as palavras da filha fossem irreconhecíveis para ela.

 

— Você está disposta a arriscar tudo, por isso? — perguntou Nia, sua voz mais baixa, mas ainda assim carregada de autoridade.

 

Kamária assentiu. Ela sabia o que estava em jogo.

 

— Estou disposta a arriscar tudo, porque já arrisquei. E se eu tiver que escolher entre a vida que vocês planejaram para mim e o que encontrei por mim mesma, eu escolho o que descobri. Mas sei que isso não será fácil de aceitar.

 

Omu trocou um olhar com Nia, e por um momento o silêncio entre eles foi ensurdecedor. Então, Nia ergueu o queixo, a verdadeira líder do clã assumindo sua posição uma última vez.

 

— Então que seja — disse Nia, fria como o gelo. — Você irá buscar a Flor de Innis, Kamária. Se a deusa te aceitar, você terá provado sua força. Se falhar... o clã te repudiará. E o humano que você defende tanto pagará o preço.

 

Kamária não hesitou. Ela sabia que esse seria o caminho. Com uma última olhada em seus pais, ela se virou e começou a caminhar para longe.

— O que aconteceu? — perguntou ele, a voz carregada de tensão.

Kamária respirou fundo e, com o máximo de calma que conseguiu reunir, contou tudo o que seus pais haviam dito. Falou sobre o desafio da Flor de Innis, sobre o preço que ambos teriam de pagar se falhassem. Giovanni escutou em silêncio, seus olhos ficando cada vez mais sombrios conforme as palavras dela desvelavam a gravidade da situação.

Mas ele não a repreendeu. Em vez disso, colocou a mão sobre a dela, firme, quente, como um gesto silencioso de apoio.

— Eu vou te apoiar — disse ele, sua voz determinada, mas serena. — Sei que isso é arriscado, mas farei o que for necessário para ajudar.

Korin, que estava encostado na parede da forja, soltou uma risada curta e incrédula.

— Vocês estão malucos — disse ele, balançando a cabeça. — Enfiar-se nas águas atrás dessa flor maldita? Só pode ser loucura. Mas não sou eu quem vai interferir. Só cuidem-se.

Kamária deu um sorriso agradecido para Korin, apesar da seriedade da situação. Ela confiava nele, sabia que ele era mais do que um simples ferreiro, e que suas palavras carregavam experiência e sabedoria.

— Eu só peço que cuide dele enquanto estou atrás da flor — disse Kamária, olhando para Giovanni com preocupação. — Não quero que nenhum innisiano chegue perto dele enquanto eu estiver longe.

Korin soltou um suspiro profundo e assentiu, cruzando os braços sobre o peito.

— Deixa comigo. Nenhum desses peixes vai sequer olhar na direção dele.

Os três seguiram juntos até a praia, onde os clãs já se reuniam. A lua iluminava as águas tranquilas com seu brilho prateado, criando um ar de solenidade quase sagrada ao encontro. O som suave das ondas batendo na areia parecia se misturar com a tensão que pairava no ar.

 

Os quatro representantes dos clãs estavam lá, suas figuras destacadas na penumbra da noite. Kamária se adiantou, mantendo o peito erguido e a voz firme. Não havia mais espaço para hesitação.

 

— Kamária Thranduilion — declarou ela, sua voz ecoando pela praia. — Auto-exilada do clã da Lua Crescente. Reclamo o direito de buscar a Flor de Innis.

 

Os líderes dos clãs se entreolharam, suas expressões carregadas de surpresa. Kamária podia sentir o peso de seus olhares, especialmente o de Bomani, o recém-nomeado representante do clã da Lua Crescente. Seus olhos brilhavam com uma intensidade desconcertante. Por um breve momento, parecia que ele iria se opor, mas antes que pudesse falar, Nia Thranduilion, a verdadeira líder do clã da Lua Crescente, deu um passo à frente.

 

— Ela tem o nosso consentimento — disse Nia, sua voz firme e cheia de autoridade, ecoando pela praia. Não havia gentileza, apenas o cumprimento da tradição. O consentimento era concedido, mas a frieza de Nia deixava claro que, para ela, aquele desafio era mais uma prova do valor de Kamária e de sua conexão com a deusa.

 

Os líderes dos outros três clãs assentiram em aprovação. Começaram a entoar palavras antigas, invocando a força e a proteção da deusa Innis para guiar os escolhidos. Kamária manteve o olhar firme, mas seus olhos procuravam por Giovanni ao longe, observando tudo com ansiedade. Ela sabia que essa separação seria um teste, não apenas para ela, mas também para ele.

 

Enquanto o cântico sagrado dos clãs ecoava, Peter apareceu ao lado de Kamária, sua figura tranquila contrastando com a tensão do momento. Ele tocou levemente o ombro dela, sussurrando com sua voz enigmática.

 

— Cuidado com as vozes dos afogados — disse ele, os olhos prateados brilhando à luz da lua. — Elas te chamarão quando estiver nas águas abissais. Não as ignore, mas não permita que elas a guiem. Apenas ouça.

 

Kamária assentiu em agradecimento. Sabia que Peter tinha uma sensibilidade aguçada para as forças invisíveis e que seu aviso era um presente raro. Ela fechou os olhos por um breve momento, sentindo o peso da responsabilidade que caía sobre seus ombros.

 

De longe, nas sombras das árvores, Athina e Sol observavam. Eles não se aproximaram, mas seus olhares atentos seguiam cada movimento de Kamária. Athina, sempre calculista e cautelosa, parecia antecipar algo maior que os outros não conseguiam ver. Sol, ao lado dela, mantinha-se em silêncio, mas havia um brilho de preocupação em seus olhos. Eles sabiam que este era um momento decisivo, mas, por enquanto, permaneciam à distância, como observadores do destino.

 

Ao sinal do menestrel, os representantes correram em direção às águas do Innis. O momento da transmutação era sempre doloroso. Assim que seus corpos tocaram a superfície, as escamas começaram a rasgar a pele, e suas pernas lentamente se transformaram em barbatanas. Kamária sentiu cada músculo gritar de dor, mas não vacilou. Giovanni, à distância, observava a transformação com fascinação e horror. Ele sabia que Kamária estava enfrentando mais do que apenas dor física — era um teste de sua força, de seu amor, de sua devoção à causa que ambos compartilhavam.

 

Quando os corpos dos representantes desapareceram nas profundezas do rio, o silêncio caiu sobre a praia. Giovanni ficou parado, estático, observando a superfície da água onde Kamária havia desaparecido, seus pensamentos tumultuados. Teath e Korin, que até então haviam mantido uma certa distância, se aproximaram de Giovanni, conscientes de que o homem precisava de apoio.

 

Teath, com seu jeito reservado e sabedoria silenciosa, colocou a mão no ombro de Giovanni.

 

— Ela é mais forte do que pensa — disse Teath, sua voz calma, como se já soubesse o desfecho dessa história. — Mas o caminho dela é solitário. E você, humano, tem suas próprias batalhas a enfrentar enquanto ela não está aqui.

 

Giovanni olhou para Teath, sabendo que ele estava certo, mas não conseguia afastar a ansiedade que o consumia. Era uma mistura de medo, frustração e impotência.

 

— Ela está lutando essa batalha por nós dois — Giovanni murmurou, mais para si do que para os outros. — E eu... só posso assistir. Sinto que estou falhando com ela. Eu devia fazer mais, devia protegê-la, mas aqui estou... impotente.

 

Korin, sempre direto, balançou a cabeça ao ouvir as palavras de Giovanni.

 

— Se você pensa assim, está sendo tolo — disse Korin, com seu jeito rude, mas sincero. — Proteger alguém não é só se jogar na frente de uma espada por ela. Às vezes, a maior proteção que podemos oferecer é dar espaço para que a pessoa lute suas próprias batalhas. Kamária é forte, mas ela também precisa que você seja forte por ela. Não é só sobre o que você pode fazer fisicamente, mas sobre estar ao lado dela, apoiando-a, mesmo quando não pode estar lá nas profundezas.

 

Giovanni respirou fundo, sentindo o peso das palavras de Korin. Ele sabia que o ferreiro estava certo, mas ainda assim, a dor de estar separado de Kamária, sem poder fazer nada para ajudá-la diretamente, era esmagadora.

 

— Eu a amo — confessou Giovanni, sua voz vacilando. — Mas às vezes sinto que meu amor não é o suficiente. Que tudo o que estou fazendo não basta. Ela merece mais do que um homem que só pode ficar aqui, esperando. Quero ser mais, quero ser alguém à altura dela.

 

Teath observou Giovanni em silêncio, suas palavras ecoando com profundidade. Após um breve momento, ele falou.

 

— O que você sente não é fraqueza, Giovanni. É humano. A verdade é que Kamária sabe disso. Ela escolheu você, não porque você é perfeito, mas porque viu em você a força que talvez nem você enxergue. O amor que você sente não é pequeno, e ela não precisa que você seja algo além do que é. Seu papel, agora, é aceitar que a jornada dela também é sua, mesmo que você a trilhe de uma maneira diferente.

 

Giovanni deixou as palavras de Teath e Korin se assentarem. O peso da culpa e do medo que o assombravam começou a se dissipar, embora ele ainda sentisse a incerteza de tudo o que estava por vir.

 

— Vocês estão certos — disse ele, finalmente. — Ela é forte, e eu preciso ser forte também. Não para lutar no lugar dela, mas para estar ao lado dela quando ela voltar. Se eu não posso ir às profundezas com ela, ao menos posso estar pronto para recebê-la quando ela emergir.

 

Korin deu um tapinha no ombro de Giovanni, um gesto de aprovação silenciosa.

 

— Isso aí, garoto. E se alguém tentar fazer algo estúpido enquanto ela estiver fora, vou estar por perto para dar um jeito neles.

 

Teath, com sua calma característica, assentiu levemente.

 

— Agora, só nos resta esperar. As águas do Innis são antigas, e o que elas exigem de Kamária é maior do que qualquer um de nós possa imaginar. Mas ela tem a força, e a deusa a guiará.

 

Os três homens permaneceram ali, na praia, em silêncio. O rio, onde Kamária havia desaparecido, estava calmo e silencioso, mas a tensão que pairava no ar era palpável. Giovanni sentia o apoio de Teath e Korin ao seu lado, mas sabia que a verdadeira batalha estava sendo travada nas profundezas — e que, em breve, ele e Kamária enfrentariam juntos o que quer que fosse trazido à superfície.

 

Agora, só restava a espera.

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