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No entrelaçar
dos destinos, os corações se preparam para as provações, enquanto os passos
antigos guiam o caminho.
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Dois dias haviam se passado desde o
retorno de Giovanni à casa de Kamária. As cicatrizes de sua jornada ainda
marcavam seu corpo, mas o brilho em seus olhos revelava uma determinação
renovada. Kamária o havia tratado com todo o cuidado, aplicando unguentos e
compressas, e, apesar de suas feridas terem cicatrizado, o peso da tensão entre
eles parecia crescer a cada dia.
Era o dia do festival de Innis e Navid,
um evento que simbolizava o renascimento e o início de um novo ciclo. A cidade
de Porto Cantante, ainda se recuperando das recentes destruições, vibrava com
uma energia diferente. As águas do rio Innis reluziam sob os primeiros raios de
sol, espelhando o céu de um azul suave. Os habitantes da cidade, embora
cansados, preparavam-se para as festividades, limpando os escombros e decorando
as margens do rio com flores aquáticas e tecidos coloridos, numa tentativa de
trazer vida e beleza a uma vila ainda marcada pela dor.
Kamária, desde as primeiras horas da
manhã, estava ocupada na cozinha, misturando ervas e raízes, preparando seus
remédios enquanto olhava, de tempos em tempos, pela janela. Ela sentia um misto
de ansiedade e excitação. O festival era sagrado, um momento em que os
innisianos e seus aliados se reuniam, e ela sabia que os olhares se voltariam
para ela e Giovanni.
Giovanni, por sua vez, estava sentado
perto da janela, observando as movimentações na rua com uma expressão
introspectiva. Ele havia melhorado fisicamente, mas por dentro, ainda carregava
o peso de suas dúvidas. Kamária percebeu sua inquietação, mas antes de dizer algo,
finalizou o último unguento e o entregou a ele.
— Aqui, tome isto. Vai ajudar nas dores
— disse Kamária, oferecendo o frasco com um sorriso suave, embora seu olhar
sugerisse que algo mais a preocupava.
Giovanni aceitou o frasco e deu um leve
aceno de cabeça, seus olhos ainda fixos na rua. Depois de um breve silêncio,
ele murmurou:
— O festival... será interessante.
Kamária notou a tensão nas palavras
dele e sabia que havia algo não dito por trás daquele comentário. Ela se
aproximou lentamente, cruzando a sala e parando ao lado dele, seus olhos fixos
no perfil pensativo de Giovanni.
— Você está pensando em ir? — perguntou
ela, com a voz baixa, mas firme.
Giovanni virou-se para olhá-la, seus
olhos claros refletindo a luz suave que invadia a sala. Por um momento, ele não
disse nada, mas então suspirou, como se estivesse carregando um fardo maior do
que suas próprias palavras podiam expressar.
— Não sei se estou pronto para voltar a
ser o que eu era antes — confessou ele. — Esses últimos dias... Eles me
mudaram. E eu sinto que não posso ser o mesmo Giovanni de antes. Eu quero estar
preparado para o que vem, mas sinto que há algo maior do que nós acontecendo.
Kamária ouviu com atenção, percebendo a
profundidade nas palavras dele. Giovanni havia mudado, e ela sabia disso. Ele
não era mais o homem impetuoso que ela conheceu, e essa nova maturidade o
tornava ainda mais misterioso para ela.
— O que você tem em mente? — perguntou
Kamária, seus olhos fixos nos dele, tentando decifrar o que Giovanni estava prestes
a revelar.
Ele hesitou por um momento, antes de
finalmente se levantar e estender a mão para ela.
— Venha comigo. Quero te mostrar algo.
Kamária arqueou as sobrancelhas em
surpresa, mas aceitou a mão dele, pegando seu xale e o acompanhando para fora
da casa. Enquanto caminhavam pelas ruas de Porto Cantante, ela sentia os
olhares da população. Embora o festival fosse um momento de alegria, muitos
ainda carregavam olhares duros e desconfiança, especialmente dirigidos a
Giovanni. Ele era um estrangeiro, um humano, e isso era motivo suficiente para
alguns manterem suas distâncias.
As ruas da cidade estavam repletas de
preparativos para o festival. Barracas com frutas frescas, tecidos coloridos e
oferendas para as deusas estavam sendo montadas nas margens do rio. O cheiro de
flores aquáticas e ervas frescas enchia o ar, misturando-se ao som suave das
águas do Innis. Entretanto, o que mais chamava a atenção de Kamária era a
atmosfera de renascimento — a cidade, apesar das feridas recentes, estava viva
e pulsante.
Giovanni guiava Kamária com uma
segurança que ela não esperava dele. A familiaridade com que ele se movia pelas
ruas a surpreendia, como se ele já tivesse explorado cada canto enquanto ela
não olhava.
— Como você conhece tão bem esses
caminhos? — perguntou ela, meio em tom de brincadeira, enquanto ele a guiava
por uma viela mais estreita.
— Eu andei por aí enquanto você me
tratava — respondeu Giovanni com um sorriso discreto. — Queria me preparar.
Saber onde pisar.
Eles pararam diante da forja de Korin.
A fumaça subia em espirais densas da chaminé, e o som do martelo contra o metal
reverberava no ar quente. O ferreiro, robusto e com a pele marcada pelo
trabalho duro, olhou para os dois com um sorriso ao ver Giovanni.
— Então, você trouxe companhia dessa
vez, rapaz? — disse Korin, com os braços cruzados e um brilho curioso nos
olhos, olhando para Kamária.
— Sim. Eu quero que ela veja —
respondeu Giovanni, seu tom mais sério agora.
Korin assentiu com a cabeça e foi
buscar o que havia prometido a Giovanni. Kamária observava a forja, o calor das
chamas e o ambiente pesado que parecia estar em contraste com a leveza das
preparações para o festival do lado de fora. Era um lugar de poder bruto, de
transformação, assim como Giovanni havia se transformado.
Quando Korin voltou, ele trazia a
armadura e a espada feitas do minério Lumen. A luz das chamas da forja refletia
na superfície brilhante das peças, que pareciam vivas. A armadura leve, com
detalhes sutis de azul e dourado, moldava-se perfeitamente ao corpo de
Giovanni, mesmo sem ele a vestir ainda. A espada, por sua vez, parecia uma
extensão natural da luz, refletindo-a em todas as direções, como se fosse mais
do que apenas uma arma.
Kamária ficou boquiaberta ao ver o que
Giovanni havia conquistado em sua jornada.
— Você fez isso... enquanto estava
fora? — perguntou ela, quase em um sussurro. — Estava ferido, Giovanni... Não
devia ter se arriscado assim.
Antes que Giovanni pudesse responder,
Kamária deu um passo à frente e o abraçou com força, quase o sufocando com a
intensidade do gesto. Ele ficou paralisado por um momento, surpreso com o
abraço, mas logo retribuiu, sentindo a intensidade do que ela estava
expressando.
— Sempre a mesma história, não é? — riu
Korin, com os olhos brincalhões. — Eu deveria esperar por isso quando alguém se
aventura por causa de materiais raros. Vocês dois são mesmo uma boa dupla.
Kamária e Giovanni se afastaram
rapidamente, corando visivelmente, e Giovanni tentou explicar:
— Nós não... — começou ele, mas
Kamária, ainda corada, o interrompeu rapidamente.
— Não somos namorados — disse ela, mais
para si mesma do que para Korin.
Korin, com um sorriso astuto, ergueu
uma sobrancelha.
— Claro que não — disse ele, em um tom
que claramente sugeria o contrário. — Mas, garoto, lembre-se do que eu te
disse. A espada e a armadura só vão alcançar seu verdadeiro potencial se você
provar ser seu mestre. Caso contrário, serão apenas ferramentas nas mãos de um
homem comum.
Giovanni assentiu, entendendo o peso
das palavras de Korin. Ele sabia que o caminho à frente exigiria mais dele do
que apenas força física. As peças que agora possuía eram símbolos de sua
transformação, mas ele precisaria provar seu valor e sua capacidade de
dominá-las.
Quando saíram da forja, o festival já
começava a tomar forma. As águas de Innis fluíam suavemente, como se ecoassem o
início do evento, e as primeiras músicas e cânticos começavam a ecoar nas ruas.
Giovanni e Kamária caminharam em direção ao ponto de encontro dos innisianos,
onde os quatro clãs se reuniriam para o festival.
Kamária, sentindo a tensão crescente no
ar, virou-se para Giovanni e o avisou:
— Giovanni, escute. Não importa o que
aconteça hoje, você não pode entrar em brigas. Especialmente durante o festival
das deusas. Muitos usarão isso como uma armadilha para expulsar humanos e
forasteiros. Os innisianos têm suas regras, e qualquer um que viole a paz
durante um festival sagrado pode ser banido, ou pior. Isso vale para todos os
quatro festivais.
Giovanni assentiu, entendendo o aviso
dela. Mas ele também sentia o peso dos olhares que caíam sobre ele enquanto
caminhavam. Os innisianos, com suas roupas tradicionais e expressões solenes,
olhavam para Giovanni com desdém, seus
olhares carregados de julgamento. Ele era um
forasteiro, um humano, e sua presença ali era vista com desconfiança.
Conforme se aproximavam do ponto de
encontro, as tensões se intensificavam. O rio Innis fluía suavemente ao fundo,
mas o ar estava pesado com a expectativa. Os quatro clãs já estavam presentes,
e a presença deles era inconfundível.
Clã da Lua Cheia emergia das águas do
rio, suas roupas molhadas refletindo a fluidez e a diplomacia de seu povo. Eles
eram os mais conectados ao comércio e às relações com os humanos, e seus
olhares eram mais suaves, quase acolhedores. Eles eram os mais dispostos a
aceitar Giovanni, mas até mesmo entre eles havia uma cautela.
Clã da Lua Minguante, composto por
guerreiros, era o mais rígido e desconfiado. Eles chegaram a cavalo, suas
expressões fechadas e os corpos cobertos por vestes escuras, marcados por
cicatrizes de batalhas passadas. Seus olhos eram duros, e o desdém por Giovanni
era claro em cada olhar. Eles não confiavam em forasteiros e não tinham
interesse em esconder isso.
Clã da Lua Nova se movia
silenciosamente, quase como sombras. Suas figuras andróginas e graciosas eram
um contraste com os outros clãs, e eles observavam tudo com uma serenidade
inquietante. Havia algo sobrenatural em seus movimentos, uma fluidez que
desafiava a compreensão humana. Eles mantinham-se à distância, mas seus olhares
afiados não perdiam nenhum detalhe.
Clã da Lua Crescente foi o último a
chegar. Seus membros andavam com uma postura confiante e perigosa, e o ar ao
redor deles parecia pulsar com uma energia intensa. Foi então que Kamária avistou
Bomani, o homem que uma vez tentou matar Giovanni. Ele caminhava entre os
membros de seu clã, sua cabeça erguida, e sua presença exalava autoridade e
desafio.
Ao ver Bomani, Kamária sentiu um nó
apertar em seu estômago. A dor e a raiva que ela sentia em relação a ele eram
profundas, e sua tensão aumentou imediatamente. Giovanni notou a mudança em sua
postura e seguiu o olhar dela, percebendo a presença ameaçadora de Bomani.
Enquanto os innisianos continuavam a se
reunir, um terceiro personagem entrou na cena, silencioso e discreto. Teath, o
innisiano que havia transportado Giovanni do continente humano para Alba Etérea
durante a tempestade causada pelo confronto entre Kamária e Atina, estava ali.
Ele fora salvo por Kamária naquela ocasião, e, desde então, ele a observava à
distância, protegendo-a em silêncio.
Teath se aproximou dos dois, seus olhos
fixos em Giovanni, como se quisesse avaliar sua transformação. Ele sabia que
Giovanni havia mudado desde aquele encontro caótico nas águas, mas ainda era
difícil para ele confiar plenamente em um humano.
— Giovanni... — disse Teath, com sua
voz calma e carregada de sabedoria. — Vejo que sobreviveu ao seu desafio. Mas
saiba que seu caminho entre os innisianos será ainda mais árduo.
Giovanni olhou para Teath, reconhecendo
o homem que o havia salvo. Havia uma dívida de gratidão entre eles, mas
Giovanni sabia que, entre os innisianos, laços como esses não garantiam
aceitação imediata.
Kamária observou a interação
silenciosamente, sabendo que a presença de Teath traria complexidades àquela
reunião. O festival era sagrado, e qualquer erro poderia ser fatal.
O ambiente estava carregado de tensão.
Os quatro clãs innisianos, com suas diferenças marcantes, já ocupavam seus
respectivos lugares ao redor do altar cerimonial. As águas do rio Innis, sempre
calmas e fluídas, refletiam o brilho do festival. As oferendas de flores,
frutas, e tecidos coloridos flutuavam na superfície, um tributo silencioso às
deusas. Kamária e Giovanni se mantinham ligeiramente afastados, mas Kamária
sentia cada olhar que recaía sobre eles. Ela sabia que, mesmo no sagrado
festival de Innis e Navid, sua presença — e a de Giovanni — não passaria
despercebida.
Havia murmúrios entre os membros dos
clãs, suas vozes baixas, mas cheias de desconfiança. Um grupo de guerreiros da
Lua Minguante, com suas vestes escuras e semblantes severos, trocavam palavras
rápidas e incisivas. Kamária não podia ouvir tudo, mas algumas palavras
atingiram seus ouvidos, carregadas de reprovação.
— Ela retornou... — um deles murmurou,
seus olhos seguindo Kamária. — E trouxe o humano com ela. Isso é uma afronta.
— Ela sempre desafiou as tradições —
respondeu outro, apertando o punho da espada embainhada. — Mas o festival é um
lugar sagrado. Não há lugar para conflitos aqui.
Do outro lado, próximo ao rio, os
membros do Clã da Lua Cheia mantinham uma postura mais diplomática, mas ainda
assim suas expressões eram carregadas de cautela. Uma mulher, vestida com
túnicas azuis que refletiam o brilho da água, balançou a cabeça lentamente.
— Kamária tem sangue innisiano, não
podemos negar isso — disse ela, sua voz melodiosa. — Mas sua conexão com os
humanos sempre nos preocupou. E agora ela traz um deles para o festival... Isso
pode perturbar o equilíbrio.
Um membro do Clã da Lua Nova, sempre
quieto e envolto em mistério, deu um passo à frente. Sua voz era suave, quase
como o vento, mas cortante em seu tom.
— A questão aqui não é apenas sua
presença — disse Elethis, seus olhos inexpressivos. — É o que ela representa.
Ela caminha entre dois mundos, e isso sempre será visto como uma ameaça para
muitos de nós.
Kamária sentia o peso de cada palavra,
mesmo que não estivesse diretamente envolvida na conversa. Ela sabia que sua
escolha de acolher Giovanni a afastava ainda mais de sua linhagem innisiana,
mas ao mesmo tempo, ela nunca se arrependeu de suas decisões.
Quando os olhos de Kamária finalmente
pousaram em seus pais, Omu e Nia, uma onda de emoções tomou conta dela de forma
quase sufocante. Ela sempre soube que esse momento chegaria — o instante em que
seria forçada a encarar as consequências de suas escolhas. Mas a realidade era
muito mais dolorosa do que havia imaginado.
O olhar de Omu, seu pai, era duro como
pedra. Ele mantinha a postura ereta, os ombros firmes como se estivesse em um
constante estado de alerta, como um guerreiro que nunca abaixa a guarda. Seus
olhos a encontraram, mas, ao contrário do calor que ela lembrava de sua
infância, tudo o que restava agora era uma frieza que a atingiu como um golpe
direto no peito. Ele não fez nenhum gesto para reconhecê-la. Kamária sentiu-se
pequena, como se o vínculo entre eles tivesse sido corroído até restar apenas
um vazio.
A ausência de qualquer sinal de
aceitação do pai trouxe à tona uma dor antiga, uma que ela havia tentado enterrar
profundamente. Quando decidiu se afastar do clã para ajudar os humanos — e,
mais especificamente, Giovanni —, sabia que isso teria um custo, mas, em seu
coração, sempre houve uma esperança infantil de que seu pai a perdoaria, de que
o sangue que compartilhavam fosse mais forte do que as divisões culturais.
Mas agora, enquanto ele a olhava sem
emoção, Kamária compreendia que aquele homem não era o pai que a acolhera em
seus braços quando criança, nem o guerreiro sábio que lhe ensinara as tradições
do clã. Ele era alguém que a via como uma traidora, alguém que havia trocado a
honra de sua linhagem por algo que ele não conseguia entender. O desapontamento
que ela sentia, tanto em si mesma quanto na figura de seu pai, era quase
insuportável. Uma mistura de vergonha e tristeza a envolvia, como se ela
estivesse no limiar de um abismo que jamais seria transposto.
Ao lado de Omu, Nia, sua mãe, parecia
distante, quase ausente. Diferente do pai, a mãe não tinha a frieza direta no
olhar, mas a ausência de qualquer expressão também falava muito. Nia sempre
fora a calmaria na vida de Kamária, a voz suave que guiava seus passos nos
momentos difíceis, a figura que a incentivava a ser quem era, mesmo quando o
mundo parecia pesado demais para carregar. Mas agora, vendo a mãe evitando seu
olhar, Kamária sentiu-se profundamente só.
Por um momento, tentou encontrar nos
olhos da mãe uma fagulha de compreensão, um sinal de que, apesar de tudo, ela
ainda via sua filha ali. Tentou se lembrar dos momentos em que Nia lhe ensinava
sobre as ervas, as tradições, sobre a força das deusas, e do carinho silencioso
que compartilhavam. Mas o que via agora era uma distância abismal, como se sua
mãe estivesse presente fisicamente, mas sua alma estivesse em outro lugar,
talvez recusando-se a encarar a filha que havia escolhido trilhar um caminho
diferente.
As memórias vieram em flashes
dolorosos: os dias de treinamento com o pai, as noites sentada ao lado da mãe
enquanto aprendia a arte da cura, as risadas compartilhadas nas margens do
rio... E agora, tudo aquilo parecia desmoronar. Ela havia se afastado deles
para seguir o próprio coração, mas, nesse momento, questionava-se se sua
escolha havia custado mais do que ela poderia suportar.
Kamária queria gritar, queria correr
até eles e pedir que a entendessem, que soubessem o quanto ela ainda os amava.
Mas as palavras não saíam. Ao invés disso, uma dor surda tomou conta de seu
peito, uma pressão que a fazia querer desabar. Ela estava dividida entre a
necessidade de provar que suas escolhas eram válidas e o desejo desesperado de
ser aceita por eles novamente.
Ao desviar o olhar dos pais, sentiu o
mundo ao seu redor se estreitar. O brilho do festival, os cânticos, as
oferendas flutuando no rio — tudo isso perdeu o sentido por um instante,
enquanto ela processava a profunda sensação de desapontamento. A festividade ao
redor parecia uma afronta ao vazio que crescia em seu interior. Kamária engoliu
em seco, lutando contra as lágrimas que ameaçavam cair. Não era o lugar para
isso. Não naquele momento.
Mas por mais que tentasse se recompor,
o peso emocional daquele encontro silencioso com seus pais a deixava frágil. A
rejeição velada, a ausência de qualquer acolhimento, a postura rígida de Omu e
o distanciamento emocional de Nia eram como facas cravando-se em seu coração.
Ela não tinha forças para confrontá-los, não ali, não agora. E, por mais que
tentasse convencer a si mesma de que havia feito a escolha certa ao proteger
Giovanni e seguir seu próprio caminho, aquele momento provava o quanto ainda era
difícil carregar o fardo de ser uma estranha entre os seus.
Giovanni, ao seu lado, parecia sentir o
peso dessa dor, mas sabia que não poderia intervir. Aquilo era algo entre
Kamária e seus pais, algo que ele jamais poderia consertar ou amenizar. E
assim, ela permanecia ali, dividida entre dois mundos, entre o dever e o amor,
entre a esperança e a decepção.
Enquanto os líderes dos clãs discutiam
em vozes baixas, a cerimônia de nomeação dos representantes começou a se
desenrolar. Cada clã escolheria seu líder para os próximos ciclos, e essa era
uma responsabilidade importante, pois os representantes conduziam as decisões
de suas tribos nos grandes conselhos.
O primeiro a ser nomeado foi Adhara,
uma mulher do Clã da Lua Cheia. Ela caminhou até o centro da assembleia, sua
figura serena e diplomática. Adhara era uma líder carismática, conhecida por
sua habilidade de negociar e manter a paz entre os innisianos e os humanos. Ela
fez uma reverência leve diante do altar, as águas do rio refletindo o brilho de
suas vestes.
— Adhara foi, como esperado, nomeada a
representante do Clã da Lua Cheia — anunciou o sacerdote com uma voz firme.
Logo após, o Clã da Lua Minguante
nomeou Tharos, um guerreiro imponente com cicatrizes que cruzavam seu rosto.
Seu olhar era duro, e ele caminhou até o centro com passos decididos, sem
desviar os olhos de Giovanni. Era claro que Tharos não simpatizava com a
presença de humanos no festival.
— Tharos, do Clã da Lua Minguante, foi
nomeado para liderar o conselho do seu clã — continuou o sacerdote.
O terceiro a ser nomeado foi Elethis,
uma hermafrodita do Clã da Lua Nova. Elethis caminhou silenciosamente, quase
como uma sombra que se deslizava entre os outros. Elethis era conhecida por sua
inteligência afiada e sua habilidade de se transformar. Seu olhar não
denunciava emoções, mas Kamária sabia que ele observava tudo com um cuidado
calculado.
— Elethis, do Clã da Lua Nova, será a
representante de seu povo — anunciou o sacerdote.
Finalmente, chegou o momento do Clã da
Lua Crescente. Kamária sentiu o ar ao seu redor ficar pesado. Ela sabia o que
estava por vir, mas ainda assim, não estava pronta para enfrentar isso. O nome
que ecoou pelo campo cerimonial pareceu bater contra seu peito com força.
— Bomani foi nomeado representante do
Clã da Lua Crescente.
Aqui está uma nova versão do
enfrentamento entre Kamária e Bomani, ajustando o ritmo e fortalecendo a
ligação emocional entre Kamária e Giovanni conforme suas sugestões:
Quando o nome de Bomani ecoou pelo
campo cerimonial, o ar ao redor pareceu se tornar espesso, quase sufocante. O
tempo hesitou por um momento, como se a simples menção de Bomani tivesse o
poder de parar o mundo por um segundo. Kamária sentiu seu estômago revirar, o
coração batendo pesado em seu peito. Ela sabia que este momento viria, mas nada
a havia preparado para a força esmagadora de vê-lo caminhar, com aquela
arrogância característica, até o centro do círculo.
Bomani caminhava com a mesma precisão
calculada de sempre, sua presença dominadora abrindo caminho entre os membros
do clã. Cada passo que ele dava parecia ecoar de maneira opressiva na mente de
Kamária, enquanto ela tentava manter seu semblante firme. Ele sabia que seu
olhar encontraria o dela, e ela se preparava para o impacto inevitável. Mas
quando seus olhos finalmente se cruzaram, o mundo pareceu encolher ao redor
deles.
O silêncio que se formou entre os dois
era carregado de significados. Não havia palavras necessárias naquele momento.
O olhar de Bomani era afiado, cortante, carregado de um desprezo velado que só
eles conseguiam compreender. Era como se ele dissesse, sem precisar mover os
lábios: "Você escolheu esse caminho, e agora está pagando o preço."
Kamária sentiu o ar abandonar seus
pulmões por um breve instante, mas se forçou a respirar. Não podia vacilar, não
diante dele. Ela não podia permitir que ele a visse fraquejar. Seu corpo estava
tenso, mas seus olhos não desviaram. Cada segundo que passava esticava a troca
de olhares até o limite, um duelo silencioso de vontades que parecia poder se
arrastar indefinidamente.
De repente, um murmúrio distante, quase
imperceptível, trouxe Kamária de volta ao presente. O movimento de alguém
passando ao seu lado quebrou o feitiço por um segundo, forçando-a a piscar. Era
uma distração mínima — um innisiano arrumando um detalhe do altar —, mas foi o
suficiente para que a tensão entre ela e Bomani se condensasse,
transformando-se em algo ainda mais intenso. Quando seus olhares se encontraram
novamente, tudo parecia ainda mais carregado. O momento de interrupção havia
apenas realçado o confronto, como um intervalo entre as batidas de um tambor
que faz a próxima ressoar ainda mais forte.
Bomani arqueou uma sobrancelha, notando
o momento em que Kamária havia desviado brevemente, e um sorriso cínico curvou
seus lábios. Era como se ele acreditasse que já tinha vencido. Kamária, porém,
não recuou. A raiva começou a borbulhar sob a superfície, lenta e silenciosa,
mas controlada. Ela endireitou os ombros e ergueu o queixo, o olhar agora
endurecido, como se dissesse: "Você não me intimida mais."
A troca de olhares se intensificou
novamente, a tensão crescendo a cada segundo. Foi então que Giovanni,
percebendo o desconforto crescente de Kamária, deu um passo à frente,
posicionando-se discretamente entre ela e Bomani. O gesto era pequeno, quase
instintivo, mas carregado de significado. Giovanni não disse nada, mas sua
presença ao lado de Kamária era como um escudo silencioso. Ele estava ali para
apoiá-la, para lembrá-la de que ela não enfrentava aquilo sozinha.
Kamária sentiu a mudança de dinâmica
imediatamente. A presença de Giovanni trouxe consigo uma onda de emoções
conflitantes. Parte dela se sentia grata por ele estar ali, por ele demonstrar,
mais uma vez, sua lealdade e proteção. Mas outra parte dela, a parte que carregava
o peso da culpa e das tradições quebradas, sentia o peso daquela proteção. A
tensão entre ela e Bomani não era apenas uma batalha pessoal — agora, envolvia
Giovanni, o símbolo da ruptura que ela havia causado entre ela e seu clã. E
isso a fazia se perguntar: Será que ele está aqui por minha causa, ou sou eu
que estou trazendo esse conflito para ele?
O sorriso de Bomani se aprofundou
quando ele notou o movimento de Giovanni. Ele olhou para o humano com um desdém
quase palpável, e o ar ao redor pareceu congelar por um instante. Bomani não
precisava de palavras para transmitir o que estava pensando: "Você acha
que pode protegê-la de mim? De nós?" O desprezo em seus olhos era claro,
mas Giovanni manteve-se firme, sem recuar.
Kamária sentiu um misto de orgulho e
apreensão. Ela sabia que Giovanni não poderia entender completamente as
profundezas da tensão entre ela e Bomani, mas ele estava lá, disposto a
enfrentar o que viesse ao lado dela. Isso a fortalecia, mas também a deixava
vulnerável de uma maneira que ela não esperava. Ela não queria que Giovanni
carregasse o fardo de seus conflitos antigos com o clã, mas ao mesmo tempo, seu
gesto protetor era um lembrete de que ela não estava sozinha. Ele a fazia se
sentir protegida, mas também responsável.
Os olhos de Kamária retornaram para
Bomani, agora com uma nova firmeza. Giovanni ao seu lado lhe dava força, mas
também lhe lembrava de que suas escolhas eram irrevogáveis. Ela havia feito sua
escolha — uma escolha que envolvia Giovanni, uma escolha que significava romper
com as expectativas de seu clã. Bomani, com seu sorriso arrogante, ainda
acreditava que poderia dominá-la, que poderia fazê-la vacilar. Mas, pela
primeira vez naquela troca intensa de olhares, Kamária soube que ele estava
errado.
Ela não desviou o olhar. E Bomani,
percebendo que seu jogo de poder não surtiria efeito desta vez, finalmente
desviou o olhar, sua expressão endurecendo em uma sombra de frustração. Ele
havia perdido aquele pequeno confronto. Não com palavras, mas com olhares.
Kamária havia vencido.
A nomeação de Bomani como representante
do Clã da Lua Crescente foi recebida em silêncio, mas a tensão que pairava no
ar era inegável. Kamária sentiu o coração acelerar, o corpo ainda vibrando com
a adrenalina do confronto, mas algo dentro dela havia mudado. Ela estava firme.
E, enquanto Bomani se afastava com sua postura imponente, Kamária soube que,
apesar de todo o peso emocional e as pressões ao seu redor, ela estava
exatamente onde deveria estar — ao lado de Giovanni, e livre das amarras que
seu clã tentava impor.
A nomeação de Bomani como representante
do clã foi feita em silêncio absoluto, mas a tensão que pairava no ar era
palpável. Kamária sentiu o coração bater forte no peito, a adrenalina ainda
correndo em suas veias. Mas, apesar de tudo, ela estava firme. Ela sabia quem
era e por que havia escolhido o caminho que trilhou. E, por mais que o peso da
rejeição e das tensões entre ela, Giovanni e Bomani fosse esmagador, ela sabia
que estava onde precisava estar.
Giovanni notou a súbita mudança de
humor de Kamária. Sem dizer uma palavra, ele a seguiu enquanto ela se afastava
discretamente da multidão. Ele sabia que ela precisava de espaço, mas não
queria que ela enfrentasse aquilo sozinha. Ao alcançá-la, Giovanni a envolveu
em um abraço apertado.
Kamária, surpresa pelo gesto, ficou
rígida por um momento, mas logo relaxou contra ele, sentindo o conforto de sua
presença. As lágrimas, que ela havia tentado segurar, finalmente rolaram
silenciosas por seu rosto. Giovanni não disse nada. Ele apenas a segurou,
permitindo que ela deixasse para fora o peso que carregava sozinha por tanto
tempo.
O momento de vulnerabilidade foi
interrompido quando alguns innisianos se aproximaram. Seus olhares eram sérios,
mas não hostis.
— Omu e Nia querem falar com você esta
noite — um deles anunciou, com a voz carregada de formalidade.
Kamária respirou fundo, tentando
recompor-se rapidamente. Ela se afastou de Giovanni e secou as lágrimas com as
costas da mão. Ela sabia que esse encontro com seus pais era inevitável, mas
isso não tornava a situação menos dolorosa.
— Eu irei — respondeu ela, com firmeza,
mas havia um traço de tristeza em sua voz.
Giovanni deu um passo à frente, como se
quisesse acompanhá-la, mas um dos innisianos se apressou em falar.
— Esse é um assunto de família, humano.
Você não é bem-vindo.
Kamária segurou a mão de Giovanni,
transmitindo um gesto silencioso de calma e compreensão.
— Espere por mim, Giovanni. Eu voltarei
— disse ela, com um sorriso suave, mas seus olhos ainda carregavam o peso das
emoções não ditas.
Relutante, Giovanni assentiu. Ele sabia
que não poderia forçar sua presença naquele momento, por mais que quisesse
estar ao lado dela.
Enquanto Kamária se afastava para se
preparar para o encontro com seus pais, Giovanni ficou parado por alguns
momentos, observando-a desaparecer entre as figuras dos clãs. Ele respirou
fundo, sentindo um misto de preocupação e impotência. A tensão entre os clãs
era palpável, e ele sabia que o festival, que deveria ser um momento de paz,
estava à beira de se transformar em algo muito mais complexo.
Teath, que havia ficado em silêncio até
então, aproximou-se de Giovanni.
— Não será fácil para ela — disse
Teath, sua voz suave, mas carregada de um entendimento profundo. — Mas essa é a
jornada que Kamária precisa trilhar. E você, humano... precisará estar ao lado
dela, mesmo que à distância, por agora.
Giovanni olhou para Teath,
compreendendo as palavras, mas sentindo o peso da separação iminente.
— Eu estarei — murmurou Giovanni, mais
para si mesmo do que para Teath.
Teath assentiu, observando Kamária
desaparecer, antes de virar-se e seguir em direção ao centro das celebrações,
onde os innisianos continuavam a reunir-se para o festival. Giovanni, por sua
vez, seguiu em direção à forja de Korin, onde o aguardava a próxima etapa de
sua jornada.
Kamária, por outro lado, preparava-se
para enfrentar seus pais e as verdades que haviam sido deixadas de lado por
muito tempo.
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