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A água o dá, a água o leva
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O sol, tingido de ouro, afundava lentamente no horizonte, transformando o céu em uma tela ardente de laranja e rosa. O calor que restava no ar era abafado pelo cheiro doce do rio Innis, enquanto as águas refletiam os últimos raios de luz do dia. Kamaria, de pé no alto de uma colina suave, observava o rio abaixo. Seus olhos percorriam cada ondulação na superfície, cada pequeno movimento das criaturas aquáticas que mergulhavam e emergiam, quase invisíveis, entre as marolas.
Ela suspirou. As mãos descansavam no cesto de vime desgastado que carregava ao quadril. Era um cesto velho, com pequenas avarias, mas servia bem ao propósito: coletar e trazer de volta os lençóis estendidos ao vento. Ela se movia pelo corredor de lençóis como se estivesse dançando, puxando cada um com cuidado e prendendo os pregadores em suas roupas. Seus pensamentos estavam distantes, mas o som de um galho se partindo próximo a trouxe de volta.
Um sorriso suave se formou em seus lábios, e, sem se virar, ela disse com uma voz aconchegante:
— O jantar já está pronto? Qual será a surpresa hoje?
Ela se abaixou para pegar o último lençol, embolando-o no cesto com os demais. Quando se virou, lá estava ele. Zaki, o homem de trinta anos, com seus cabelos ruivos caindo em cachos longos e soltos, e os olhos azuis que sempre carregavam uma profundidade sincera. Os olhos dele captavam mais do que apenas a luz ao redor — eles refletiam algo a mais, uma emoção que sempre escapava às palavras. Kamaria observou o rosto dele por um momento, percebendo a barba que começava a se espessar.
— Quando foi a última vez que você fez a barba, Zaki? — Ela ergueu uma sobrancelha, seu tom misturando preocupação e um toque de humor. — Venha, traga a navalha, eu farei isso para você.
Zaki piscou, o olhar dele denunciando uma mistura de surpresa e relutância. Mas Kamaria não lhe deu escolha, sua voz firme selando o pedido disfarçado de ordem:
— Isso não é um pedido. — Ela riu baixinho.
Ele se deu por vencido e desapareceu para dentro da casa, retornando momentos depois com uma navalha, uma tira de couro e uma solução espumante. Kamaria indicou que ele se sentasse no banco de madeira ao lado da porta, enquanto ela preparava os itens. O som rítmico da lâmina sendo passada no couro ecoava suavemente no ar, acompanhando os últimos momentos do crepúsculo.
— Acenda o fogo e volte — pediu ela com a mesma serenidade.
Zaki foi até o interior da casa novamente e voltou com uma lamparina acesa, colocando-a sobre a mesa de madeira próxima. A luz amarela da chama oscilante iluminou suavemente os traços do rosto dele, enquanto Kamaria pegava o sabão e começava a ensaboar-lhe o rosto. A barba ruiva logo desapareceu sob a espuma branca, e ela sorriu ao notar como as bolhas captavam o brilho da lamparina. Seus dedos, hábeis e gentis, misturavam água ao sabão, aumentando a espuma, fazendo pequenas bolhas dançarem pelo rosto do homem.
Kamaria fez uma pausa para lavar as mãos e secá-las. Pegou a lâmina com cuidado, examinando seu fio sob a luz fraca. O dia já estava desaparecendo por completo, mas o sorriso em seus lábios permaneceu firme quando ela disse:
— Não se preocupe, Zaki. Eu já fiz isso muitas vezes.
Zaki, em silêncio como sempre, inclinou o queixo conforme indicado. O som suave da lâmina cortando a barba ecoou na clareira, entrecortado apenas pelo farfalhar das folhas ao redor. A mão de Kamaria guiava os movimentos com precisão, revelando a pele pálida debaixo dos pelos ruivos. Zaki mantinha os olhos fixos nela, e, em um dado momento, os olhares se cruzaram. Havia algo naquele olhar — uma intensidade, uma pergunta não verbalizada, um sentimento que ele nunca conseguia expressar em palavras.
Kamaria sentiu o peso daquele olhar.
— Você continua com o mesmo olhar de sempre — comentou ela, com um sorriso tranquilo. — Desde que eu te encontrei, você possuía esse olhar sincero e profundo... como as águas do Innis. Agora você é um homem feito, independente. E, sem dúvida, o melhor cozinheiro que eu já conheci. Embora eu não tenha conhecido muitos. — Ela riu baixinho, tentando aliviar a atmosfera.
Ela limpou a lâmina e voltou a raspar mais alguns pelos. Em silêncio, Zaki ergueu a mão e tocou o pulso dela, parando o movimento. Ele olhou para ela com seus olhos, transmitindo algo que palavras jamais poderiam expressar: uma tristeza, um desejo, uma mágoa que Kamaria podia sentir mais do que compreender. Ele não precisava falar. A conexão que ambos haviam desenvolvido ao longo dos anos era tão profunda que Kamaria sabia exatamente o que ele queria dizer.
O tempo parecia suspenso. Kamaria sentiu o peso de suas emoções, tão claras quanto a água do Innis.
Ela suspirou, gentilmente soltando seus dedos dos dele e direcionando sua cabeça para o outro lado. O som da lâmina cortando os últimos fios de barba ecoava entre as árvores, mas o que realmente preenchia o ar era o silêncio carregado de tudo o que ambos não diziam.
Quando Kamaria terminou, ela pegou uma bacia de água e a levou até Zaki. Lavou cuidadosamente seu rosto, observando os contornos limpos da pele dele. Era estranho como ele parecia vulnerável e ao mesmo tempo tão forte.
— Você fica muito bonito assim, — disse ela, quase sussurrando. — Tenho certeza de que as mulheres de Porto Cantante não resistiriam ao seu charme.
Os olhos de Zaki, no entanto, escureceram por um breve instante. Ele a observou profundamente, como se estivesse tentando lhe dizer algo que suas mãos e gestos nunca conseguiriam expressar. Havia frustração ali, um desejo silencioso que ele sabia que nunca poderia ser realizado.
De repente, ele se levantou, empurrando a bacia de água com o pé, derrubando-a no chão. O som da água caindo sobre a terra ecoou enquanto ele se afastava, entrando na casa e trancando a porta atrás de si.
Kamaria ficou parada, o barulho da porta ecoando no ambiente silencioso. Um suspiro escapou de seus lábios. Não era a primeira vez que isso acontecia, mas, de algum modo, cada vez parecia mais difícil.
A comida ainda exalava seu cheiro, mas parecia distante. Ela não podia evitar a sensação de que algo importante havia se quebrado. O cheiro familiar do guisado de lebre chegou às suas narinas, mas não conseguia dissipar o peso que agora se abatia sobre ela. Levantou os olhos para o céu. A lua cheia brilhava com intensidade, banhando o rio com sua luz prateada.
Sem pensar, Kamaria seguiu em direção à floresta. Seus pés deslizavam descalços entre as folhas, guiados por um caminho que seu corpo conhecia bem. Logo, o som de um pequeno córrego alcançou seus ouvidos. Ali, sob a luz suave da lua cheia, Kamaria começou a se despir lentamente. A água estava fria ao toque, mas não a incomodava. Assim que seus pés tocaram o fundo do riacho, seu corpo começou a mudar. Lentamente, sua forma humana dava lugar à sua verdadeira essência. As escamas prateadas começaram a reaparecer, primeiro nos tornozelos, depois subindo pela cintura, até que sua cauda de sereiana estivesse completa.
A transformação sempre era um alívio para Kamaria, como se cada vez que voltasse à sua forma natural, ela se reconectasse com quem realmente era. Sob a luz da lua, seu corpo reluzia, as escamas refletindo o brilho prateado. Seu peito subia e descia lentamente, e, sem perceber, seus lábios se abriram.
O som que saiu não era uma canção qualquer. Não havia palavras, mas o lamento que se seguiu carregava todo o peso de sua alma. Era uma melodia triste, profunda, que preenchia o espaço ao redor e ressoava nas águas.
A lua parecia pulsar em sincronia com seu coração. Sua voz era como o próprio fluxo da água, pura e fluida, carregando consigo a tristeza que ela sempre sentia, mas raramente expressava. Era como se a própria água do córrego respondesse ao seu chamado, vibrando em harmonia com sua voz.
De longe, Zaki observava. Ele havia seguido Kamaria em silêncio, sem que ela percebesse, e agora estava escondido entre as folhas. Seus olhos, brilhando à luz da lua, eram um reflexo de sua tristeza. Ele não podia dizer nada, mas a dor que ele sentia estava escrita em cada linha de seu rosto. Uma lágrima silenciosa escorreu por seu rosto, caindo na terra. Ele sabia que, por mais que tentasse, nunca poderia estar ao lado dela como desejava
Kamaria continuou a cantar, sentindo a presença de Zaki à distância. Eles estavam conectados, de uma maneira que transcendia as palavras, mas ao mesmo tempo, ela sabia que aquela conexão nunca seria o suficiente. E, assim como a água, ela sabia que alguns laços, por mais fortes que fossem, estavam destinados a se dissolver, como o som da sua voz se misturando ao vento da noite.
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