Efeitos Colaterais

 

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Todo pingo, na água, reverbera 

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Participantes: Giovanni, Kamaria

 


O barco balançava suavemente ao ritmo das marolas escuras do rio Innis. As águas, antes turvas, agora eram tão profundas quanto a noite, refletindo a tensão no ar. Kamaria, com o olhar fixo nas estrelas, guiava os dez pequenos botes como quem conduzia uma constelação pelo céu de Innis. Os candeeiros nas pontas dos barcos se destacavam como estrelas móveis, navegando pela escuridão. Cada uma dessas luzes parecia ser o elo frágil que os mantinha conectados à vida em meio ao caos que haviam deixado para trás.

A maioria dos passageiros estava em silêncio, cansados e feridos, o medo substituindo qualquer vestígio de esperança. Não havia euforia pela chegada ao novo continente. Sabiam da infame recepção de Porto Cantante, conhecida por sua hostilidade explícita aos forasteiros. Para muitos, os últimos dias foram um pesadelo, e o desembarque parecia ser apenas mais um passo nesse pesadelo interminável. A devastação em suas mentes era palpável, assim como o cansaço que dominava seus corpos. Kamaria sentia o peso dessas emoções como uma sombra densa, sufocante.

Kamaria, no entanto, sentia um alívio amargo ao não encontrar Zaki a bordo do Esperança. O vazio que a ausência dele deixava em seu peito era tão pesado quanto o cansaço físico. Ela estava exausta — física e emocionalmente — mas não havia tempo para descansar. A visão de Porto Cantante se aproximando trazia consigo uma mescla de sentimentos contraditórios. O alívio por não ter de enfrentar Zaki se misturava à culpa por tantos ao seu redor estarem sofrendo. Como poderia se sentir aliviada enquanto outros haviam perdido tanto? Esse pensamento corroía seu espírito, trazendo um nó à garganta que ela lutava para não deixar transparecer. Ela sabia que sua revelação como sereia mudaria tudo, e o medo do que viria a seguir começava a se instalar.

As embarcações se aproximavam de Porto Cantante, e o cheiro forte do óleo queimado dos candeeiros se misturava ao aroma salgado da brisa primaveril. O ar, normalmente fresco e tranquilo, agora carregava o peso da destruição. A visão da cidade, tão próxima agora, deveria trazer algum alívio, mas ao invés disso, apenas aumentava a tensão. Os humanos a bordo estavam inquietos, especialmente ao verem os innisianos na margem, que pareciam tão confusos e angustiados quanto eles. As crianças se agarravam aos adultos, seus olhos arregalados não desviavam das águas, que ainda pareciam vivas após o tsunami reverso. Gritos de moradores tentavam se sobrepor ao som das ondas batendo contra os restos das construções destruídas. Kamaria notou que alguns edifícios que antes se erguiam firmes nas margens do rio estavam agora submersos ou em ruínas. O caos parecia uma presença viva, implacável.

Os canais que antes conduziam a vida fluente de Porto Cantante agora estavam bloqueados por destroços — madeiras flutuantes, escombros de casas, pedaços de embarcações naufragadas. Barcos estavam atracados de forma precária, como se tivessem sido abandonados na pressa do desastre. As águas agitadas do Innis ainda pareciam ter uma vida própria, inquietas, como se relembrassem o trauma recente do tsunami reverso.

Kamaria, cansada, tentava ignorar a agitação ao seu redor, focando em guiar o bote com segurança até a margem. Suas palavras, contidas mas firmes, cortaram o silêncio que apenas o som do rio ousava interromper:

— Estamos passando sobre as casas de muitos innisianos. A onda gigante fez a água recuar e voltar com força, destruindo tudo. Eles perderam tanto quanto vocês, humanos.

Cada palavra que saía de sua boca era um lembrete não apenas para os humanos, mas para si mesma. Ela estava tão envolvida nesse desastre quanto eles, e sua própria existência, agora comprometida, estava em jogo.

Quando finalmente atracaram no píer, um homem alto e corpulento, de cabelos tão brancos quanto a neve, estava à espera. Ele era uma figura imponente, refletindo a luz laranja das lamparinas com uma palidez quase fantasmagórica. Ele jogou uma corda para Kamaria, que a amarrou na embarcação com habilidade, seus movimentos rápidos e automáticos, apesar do cansaço que a dominava. Recusando a mão estendida do homem, ela preferiu permanecer no barco para ajudar os feridos a desembarcar. No entanto, conforme seus olhos se encontraram com os do homem, uma dúvida imediata surgiu, uma preocupação que ela não podia ignorar.

— Ainda há vagas nas estalagens e casas de cura? — perguntou Kamaria, aflita. Sua voz carregava a urgência não apenas de seu próprio destino, mas o destino daqueles que ela havia conduzido até ali.

O homem coçou a barba rala, a tensão visível em sua postura. O olhar que ele lançou ao redor indicava que ele sabia da situação desesperadora em que estavam. O cheiro das águas lamacentas se misturava ao cheiro de fumaça e cinzas, aumentando a sensação de desastre iminente.

— Muitos innisianos perderam suas casas com a maré. Estamos dando prioridade aos nossos. As poucas vagas que restam estão sendo reservadas para os visitantes, mas não sei se haverá lugar para todos — respondeu ele, sua voz grave e resignada, carregada pelo peso da realidade que enfrentavam.

Kamaria mordeu o lábio, uma sensação crescente de impotência tomando conta de seu corpo. O peso de sua própria responsabilidade aumentava. Como poderia garantir segurança para esses humanos quando sua própria casa estava em caos? Apenas ela e Giovanni permaneciam no bote agora. Quando olhou para o humano ferido, percebeu que ele estava em pior estado do que imaginara. Sua perna, ainda envolta em um curativo improvisado, parecia inflamada, e a febre começava a subir, o suor escorrendo por sua testa. A palidez em seu rosto contrastava com a forma determinada com que ele tentava manter a compostura.

Giovanni, lutando para manter a voz firme, falou com a voz rouca e entrecortada:

— Eu preciso de um antídoto... Minha perna ainda vai me servir, mas... precisamos agir rápido.

O homem olhou surpreso para Giovanni, claramente não esperando tal declaração de alguém tão abatido. No entanto, sua expressão endureceu ao perceber a gravidade da situação. Um suspiro profundo escapou de seus lábios, carregado com o peso da responsabilidade.

Ele estendeu a mão para ajudar Giovanni a desembarcar, e disse com voz cansada:

— Se ele não vai morrer agora, o melhor é procurar um alquimista. Há instalações provisórias perto do porto. Não temos tempo a perder.

Kamaria, agora segurando o braço de Giovanni com firmeza, não podia ignorar o pensamento que a atormentava desde o momento em que pisaram em Porto Cantante: Quanto tempo mais até que seu segredo fosse descoberto? Ela precisava ajudar, mas o risco estava crescendo com cada passo que dava em direção a essa nova realidade

— Vamos tentar o alquimista... talvez ele possa ajudar — sugeriu Giovanni, sua voz vacilante, enquanto a febre tornava sua respiração pesada.

 

Kamaria assentiu e o encostou contra a parede desgastada de uma construção próxima. O cheiro de água salgada e de óleo queimado dos candeeiros invadia suas narinas, e a textura áspera da parede parecia um contraste frio contra a pele quente de Giovanni. Ela se inclinou perto de seu ouvido, suas palavras saindo em um sussurro urgente:

 

— Espere aqui. Eu voltarei logo.

 

Ela sabia que cada segundo era crucial. Sem perder tempo, Kamaria correu até o beiral de um dos canais de Porto Cantante e mergulhou nas águas escuras. O impacto com a água fria a revitalizou momentaneamente, e, ao deslizar pelas correntes familiares, ela sentiu a resistência suave das ondas contra sua pele. As águas do Innis sempre a acolheram, como uma filha que retornava ao lar. No entanto, hoje, o conforto natural do rio trazia consigo um peso invisível. A água carregava não apenas os destroços físicos do tsunami reverso, mas também os fantasmas da sua decisão.

 

Conforme Kamaria nadava pelas correntes agitadas, a escuridão ao seu redor parecia ter uma vida própria. Fragmentos de construções destruídas, madeiras flutuantes e pedaços de embarcações naufragadas compunham a paisagem submersa. O cheiro salgado das águas misturava-se a um odor acre e metálico que subia das profundezas, como um lembrete constante do desastre. Pequenos barcos atracados precariamente balançavam como folhas à deriva, e algumas das construções submersas ainda deixavam ver o topo dos telhados, como se estivessem tentando emergir para respirar após o impacto do tsunami.

 

No entanto, algo ainda mais opressor tomava conta de Kamaria. Enquanto deslizava pelas correntes, uma sensação incômoda crescia dentro dela. A revelação de seu segredo de sereia — algo que ela havia mantido oculto por quarenta anos — não poderia ser desfeita. A decisão de expor sua verdadeira natureza para salvar aqueles humanos era um ato que, no fundo, ela sabia que traria consequências. O que Zaki pensaria? O que ele faria se descobrisse? Porto Cantante havia sido sua casa por anos, mas agora essa segurança parecia ruir como as casas destruídas ao seu redor. Kamaria nadava, mas o peso da culpa e da incerteza a puxava para o fundo.

 

Ao sair das águas e esperar suas pernas humanas retornarem, a dor da transmutação a lembrou da dualidade que sempre carregava — o conflito físico era uma extensão do conflito interno. Ela se encolheu, respirando com dificuldade enquanto suas escamas desapareciam e as pernas humanas surgiam novamente. A transmutação sempre foi dolorosa, mas agora o fardo emocional parecia amplificar cada pontada de dor. Ela havia escolhido se revelar para salvar desconhecidos, mas a que custo? Seus pensamentos ecoavam em sua mente enquanto ela corria pelas ruelas ainda molhadas da cidade.

 

As ruas estavam desertas, mas o som de vozes distantes, gemidos de dor e o movimento de barcos ao longe deixavam claro que o caos havia tomado conta de Porto Cantante. A cada passo que dava, Kamaria percebia a precariedade das construções ao seu redor. Muitas casas estavam inundadas, com as portas arrombadas pelas águas que invadiram o interior. O som das águas lamacentas se misturava com o ruído de madeiras rangendo, enquanto moradores tentavam consertar o que restava de suas vidas.




 Ela chegou à casa do alquimista, uma construção simples e discreta, localizada em uma parte mais alta da cidade, que havia escapado das inundações diretas. As luzes estavam apagadas, e o silêncio ao redor aumentava a urgência da situação. Kamaria bateu na porta com força, sentindo cada segundo passar como um peso sobre seus ombros. As cicatrizes de suas escolhas pareciam mais profundas do que nunca.

 

A porta finalmente se abriu, revelando Astar, o alquimista teiniano, cuja pele escura era iluminada por cicatrizes incandescentes que pulsavam com uma luz alaranjada. Ele a encarou com irritação, sua voz grave ecoando como um trovão:

 

— Se bater mais uma vez assim, vou te mandar embora à pontapés! — resmungou ele, sua postura tão imponente quanto a própria cidade devastada.

 

Kamaria não perdeu tempo. O ar estava carregado com a urgência de suas palavras enquanto ela disparava:

 

— Preciso de ajuda, Astar. Um humano foi envenenado por um innisiano, e ele vai morrer se não fizer algo. Não tenho tempo para esperar.

 

Astar arqueou uma sobrancelha, surpreso com o que acabara de ouvir. Seus olhos a examinaram rapidamente, como se tentasse medir a seriedade da situação, mas sua curiosidade evidente transpareceu em sua resposta, carregada com um tom sarcástico de ceticismo:

 

— Um humano... sobrevivendo a um ataque innisiano? Isso eu preciso ver — disse ele, cruzando os braços e recostando-se contra o batente da porta, deixando sua postura casual transparecer. Seu interesse não era tanto o humano, mas o que aquilo representava.

 

Kamaria podia sentir o tempo escorregar entre os dedos. Giovanni estava ficando cada vez mais fraco, e Astar parecia interessado apenas na novidade que o envenenamento apresentava. Ela respirou fundo, segurando a raiva que começava a subir dentro dela. Não podia se dar ao luxo de irritar o alquimista, mas sabia que ele queria algo mais.

 

— Não temos tempo para isso — disse Kamaria, sua voz firme, mas controlada. — Ele está com febre alta, o veneno já está avançando. Preciso que você nos ajude... eu pagarei de alguma forma. Qualquer coisa que você queira, apenas nos ajude.

 

Astar levantou-se, agora mais interessado. Ele observou as cicatrizes que brilhavam em seu próprio corpo e sorriu de lado. Havia algo ali, uma troca, uma barganha que ele poderia fazer. Teineanos eram conhecidos por negociar segredos, artefatos, e Kamaria sabia que estava entrando em um terreno perigoso.

 

— Bom, bom, então temos um acordo? Eu faço o antídoto e, em troca, você me deve um favor — disse ele, pegando uma pequena valise com ingredientes. Seus olhos fixaram-se nos de Kamaria, desafiando-a a recusar.

 

Kamaria sentiu o peso do dilema. Giovanni estava à beira da morte, e Astar sabia disso. Ela não tinha escolha. Respirou fundo, aceitando que esse favor poderia custar mais do que estava disposta a pagar.

 

— Sim — respondeu ela, com um aceno breve. — Apenas venha rápido.

 

Astar sorriu, satisfeito, e seguiu Kamaria com passos firmes, embora sua postura ainda transparecesse a arrogância de alguém que sabia seu valor. Enquanto caminhavam até onde Giovanni aguardava, o silêncio entre eles era apenas quebrado pelo som dos pés de Kamaria tocando o chão molhado e pelos murmúrios distantes de Porto Cantante. O alquimista, porém, observava tudo com um olhar atento, não apenas curioso, mas calculista.

 

— Então... um humano envenenado por um innisiano? — Astar finalmente falou, com sua voz grave ressoando. — Isso não acontece todos os dias. Estou curioso, como ele sobreviveu até agora?

 

Kamaria suspirou, sabendo que Astar queria mais respostas do que ela estava disposta a dar.

 

— Foi sorte — respondeu ela, mantendo a voz neutra, sem dar espaço para questionamentos profundos. — Ele sobreviveu porque precisou.

 

— Sorte, é? — Astar riu com desdém. — Você sabe, Kamaria, que sorte tem um preço. E o meu preço não é baixo.

 

Ela podia sentir a tensão em seu corpo se acumulando. Giovanni estava ficando cada vez mais fraco, e o tempo estava se esgotando. Astar a fazia sentir que cada palavra era uma negociação, cada segundo uma dívida acumulada. Ele queria algo em troca, e ela sabia que ele não ajudaria sem obter algo valioso.

 

— Eu te devo um favor — Kamaria disse, finalmente cedendo, tentando controlar a frustração. — Só faça o que tem que ser feito. Não há mais tempo para discussões.

 

Astar sorriu satisfeito, seus olhos brilhando à luz das cicatrizes incandescentes. Ele sabia que ela estava encurralada e aproveitaria cada momento disso.

 

Quando chegaram à casa de cura improvisada, Giovanni estava pálido, encostado contra a parede, respirando com dificuldade. Sua pele estava fria ao toque, e os dedos das mãos tremiam levemente. Kamaria o segurou gentilmente, tentando mantê-lo acordado, mas sua fraqueza era evidente. Seus olhos estavam semicerrados, e sua cabeça oscilava levemente, como se ele estivesse à beira da inconsciência.

 

Astar se ajoelhou ao lado de Giovanni, examinando a ferida com um olhar clínico e impassível. Ele mexeu no curativo improvisado com destreza, e um leve silvo escapou dos seus lábios quando viu a gravidade da ferida.

 

— O veneno dos innisianos é mortal — disse Astar, enquanto retirava uma série de frascos e ervas da valise. — Mas você teve sorte, garoto. Este é o veneno da moréia-camaleão. Não é fácil de tratar, mas... — ele deu uma pausa dramática, abrindo um frasco com um líquido azul iridescente. — Se seguir minhas instruções, você vai sobreviver.

 

Kamaria observava, ansiosa, enquanto Astar misturava os ingredientes com precisão. Ele despejou o líquido azul em um pequeno cálice, e uma fumaça suave subiu quando o antídoto começou a borbulhar. Giovanni abriu os olhos com dificuldade, sua mente confusa entre a febre e a dor que irradiava da perna. Seu corpo estava começando a perder a luta, e Kamaria sentia o peso da situação aumentando sobre seus ombros.

 

— Giovanni — Kamaria chamou suavemente, apertando o braço dele, tentando mantê-lo consciente. — Beba isso. Vai ajudá-lo.

 

Giovanni, sem forças para discutir, pegou o cálice que Astar oferecia e bebeu o líquido amargo. O gosto era horrível, uma mistura de ácido e ferrugem, queimando enquanto descia por sua garganta. Ele fez uma careta, o corpo tremendo brevemente enquanto o antídoto começava a fazer efeito. O alívio era mínimo, mas perceptível.

 

— Não vou esquecer essa dívida, Astar... — Giovanni murmurou, sua voz rouca e fraca, enquanto entregava o cálice vazio de volta. — Kamaria... obrigado... mais uma vez...

 

Kamaria apenas assentiu, exausta tanto física quanto emocionalmente. Ela havia sacrificado muito para salvar Giovanni, mas a que custo? Cada escolha parecia afastá-la mais do que ela conhecia, e agora havia uma nova dívida a ser paga.

 

Astar, satisfeito com seu trabalho, começou a arrumar seus frascos e instrumentos, mas não sem um último comentário sarcástico:

 

— Bom, garoto, você vai sobreviver... desde que não faça mais besteiras por aí. — Ele sorriu de canto, mas seus olhos se voltaram para Kamaria, como se quisesse lembrá-la de que sua parte do acordo ainda estava por vir. — Nos veremos em breve, Kamaria. Não esqueça nossa barganha.

 

A alquimista se afastou, deixando Kamaria sozinha com Giovanni. Ela suspirou profundamente, sentindo o cansaço afundar em seu corpo. Ao ouvir Giovanni, agora mais consciente, implorar por abrigo, ela hesitou por um momento. Sua vida já estava em caos. Levar Giovanni para sua casa só complicaria ainda mais a situação.

 

— Você pode ficar em minha casa — disse finalmente, resignada, sentindo o peso de suas próprias palavras. — Mas negociaremos como você vai contribuir.

 

Giovanni tentou sorrir, um esforço fraco, mas agradecido. Kamaria sabia que ele estava em um estado vulnerável, e isso a deixava desconfortável. Não era comum para ela cuidar de estranhos, ainda mais humanos. Seu mundo já estava virado do avesso. E agora teria que lidar com mais um problema.





Enquanto Kamaria ajudava Giovanni a caminhar pela trilha sinuosa que levava à sua casa na floresta, o peso dele sobre seus ombros parecia aumentar a cada passo. O corpo ferido de Giovanni pressionava contra o dela, e a fadiga começava a tomar conta de ambos. Cada movimento era lento e vacilante, e a cada oscilação, Kamaria sentia o esforço de sustentá-lo. Suas pernas, já cansadas da luta e da fuga, agora carregavam o fardo adicional de responsabilidade. O corpo de Giovanni estava quente, febril, e cada vez que ele cambaleava, ela tinha que firmar os pés no chão úmido para evitar que ambos caíssem.

— Você ainda está comigo, Giovanni? — Kamaria murmurou, tentando avaliar o estado dele.

Giovanni soltou uma risada fraca, quase um sopro. — Estou... por enquanto. Mas... se você me deixar cair, acho que não me levanto mais.

Kamaria suspirou, ajustando o braço dele sobre seus ombros, puxando-o para mais perto.

— Não vou te deixar cair. Falta pouco. — Ela tentava convencer tanto a ele quanto a si mesma.

A lua cheia brilhava no céu, sua luz prateada se infiltrando pelas copas das árvores, projetando sombras que dançavam no caminho à frente. O som suave do rio Innis era uma constante, um murmúrio distante que misturava-se ao farfalhar das folhas e ao canto noturno das criaturas aquáticas. Kamaria podia sentir o cheiro da floresta, um aroma fresco que contrastava com o salgado que ainda impregnava a brisa — uma lembrança do mar e do desastre que haviam deixado para trás.

— O que foi tudo aquilo... no rio? — Giovanni perguntou, a voz fraca, mas sua curiosidade ainda presente. Ele não conseguia evitar se perguntar o que havia acontecido. — Aquele lugar parecia... vivo. As águas, os destroços... — Ele parou de falar por um momento, ofegante. — É sempre assim por lá?

Kamaria hesitou. — Não, não deveria ser. As águas do Innis estavam calmas antes de tudo isso. — Ela fez uma pausa, olhando de relance para Giovanni, que respirava com dificuldade. — O tsunami reverso... é algo raro. Algo que traz destruição tanto para nós quanto para os humanos.

Giovanni fechou os olhos por um instante, deixando a cabeça cair contra o ombro dela. — Então somos todos... peixes pequenos no mesmo rio. — Ele riu baixinho, apesar de sua dor.

— Algo assim. — Kamaria murmurou, ajustando o braço dele mais uma vez, tentando carregar o peso crescente. O cansaço a puxava para baixo, mas ela continuava, sabendo que parar não era uma opção.

— E você, Kamaria? — Giovanni voltou a falar, sua voz mais suave agora. — Por que você fez isso? Salvou alguém como eu... quando podia simplesmente... me deixar para trás?

Kamaria apertou os lábios, sua mente voltando a Zaki. O nome dele sussurrava em seus pensamentos a cada passo, como se fosse trazido pela brisa suave. O que Zaki diria sobre ela ter se envolvido tanto? Como ele reagiria ao saber que ela havia arriscado tanto por um humano? O fardo do segredo e das escolhas que fez agora pesavam sobre ela, mais do que o peso de Giovanni.

— Não se engane — ela respondeu, sua voz séria. — Não fiz isso por bondade. Há coisas maiores em jogo.

Giovanni ficou em silêncio por alguns momentos, digerindo as palavras. Ele já estava fraco, mas mesmo assim, ainda queria entender a mulher que agora o carregava.

— Coisas maiores... — ele repetiu, como se quisesse acreditar nela, mas não estivesse totalmente convencido. — Eu só espero que eu possa retribuir, de alguma forma. Mesmo que... — Ele se interrompeu ao tropeçar em uma raiz, quase caindo, mas Kamaria o segurou com firmeza.

— Não pense nisso agora. — Kamaria insistiu, tentando encerrar o assunto. — Apenas continue andando. Nós já estamos quase lá.

A lua continuava a segui-los, sua luz suave e fria sendo uma testemunha silenciosa do fardo que Kamaria carregava. A pressão sobre seus ombros, o peso físico de Giovanni, era um lembrete constante das escolhas que ela havia feito. Cada passo a aproximava mais da casa, mas também trazia à tona suas dúvidas.

Giovanni respirou fundo, a exaustão clara em sua voz. — Eu sei que você disse que não é por bondade, mas... — ele hesitou, tentando encontrar as palavras. — Eu te devo minha vida. Vou me recuperar. E quando isso acontecer... eu prometo que... você não vai se arrepender de ter me ajudado.

Kamaria soltou um riso sem humor, sentindo o peso das promessas que Giovanni fazia sem entender totalmente a situação. — Giovanni, nem sempre as coisas funcionam assim. Você pode prometer o que quiser, mas isso não vai mudar o que já está feito.

Eles caminharam em silêncio por mais alguns minutos, o som das folhas secas sendo esmagadas sob seus pés e o murmúrio constante do rio ao longe preenchendo o espaço entre eles. Giovanni parecia estar à beira de desmaiar, mas ainda mantinha-se consciente, mesmo que apenas por teimosia.

— Eu vou melhorar — ele disse, a voz arrastada pelo cansaço. — Só preciso de um pouco de tempo... e vou ficar bem. Você... confia nisso?

Kamaria não respondeu de imediato. O silêncio que se seguiu foi preenchido pelo vento que passava entre as árvores. Quando ela finalmente falou, sua voz era baixa, quase um sussurro.

— Não é em você que eu não confio, Giovanni. É no que isso tudo pode significar para mim.

Giovanni, exausto, estava prestes a responder, mas sua mente já começava a falhar. Ele lutava para se manter lúcido, e a menção das palavras de Kamaria apenas aumentava sua curiosidade, mesmo que ele não tivesse forças para questioná-la mais a fundo.

— Zaki... — Kamaria murmurou, sem perceber que havia dito o nome em voz alta, os pensamentos se misturando com as palavras.

— Zaki? — Giovanni perguntou, a voz fraca, mas sua curiosidade evidente. — Quem é ele?

Kamaria estremeceu, percebendo o deslize. — Ninguém que você precise se preocupar. — respondeu rapidamente, desviando o olhar, a menção do nome de Zaki criando uma nova onda de tensão em seu peito.

Finalmente, a casa de Kamaria apareceu à frente, uma construção simples e isolada na clareira da floresta. A luz da lua iluminava as árvores ao redor, criando padrões geométricos no chão, como se a natureza estivesse testemunhando cada passo que davam. A sensação de chegar deveria ter trazido alívio, mas Kamaria sentia o peso das decisões que a aguardavam crescendo.

Ela parou diante da porta, respirando fundo. O peso de Giovanni ainda sobre seus ombros, o calor febril dele subindo por seu braço.

— Estamos aqui — disse ela, mais para si mesma do que para Giovanni, cuja consciência parecia se esvair.

Aquela noite seria o início de algo que ela ainda não estava pronta para enfrentar. O som distante do rio Innis, sob a luz pálida da lua, parecia sussurrar que tudo estava prestes a mudar.


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