Ecos da Terra e Coração

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Quando o silêncio se alonga, cada batida do coração ressoa como um eco profundo, e os caminhos da alma se entrelaçam com os da terra.
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O sol já havia se posto há horas, e a noite banhava Porto Cantante em um manto de luz prateada. Kamária caminhava pela casa em silêncio, rearranjando enfeites e flores frescas nos vasos, mas sua mente estava longe. Seus movimentos eram mecânicos, cada objeto que tocava sentia-se desconectado de suas preocupações reais. O festival se aproximava, e cada canto da casa precisava de um toque especial, mas seus pensamentos vagavam pelas profundezas da floresta, onde imaginava Giovanni.

Enquanto deslizava os dedos por uma cortina de contas brancas na entrada da cozinha, uma pontada de preocupação apertou seu peito. "Ele ainda não voltou..." O pensamento ressoava em sua mente. Giovanni era forte, e seus ferimentos estavam quase curados, mas sua ausência prolongada começava a causar um desconforto incômodo. "Ele deveria ter voltado", refletiu, com um suspiro contido.

Sentou-se à mesa da sala, onde uma cesta de frutas e flores aguardava, mas o alívio que o perfume suave da lavanda normalmente trazia não veio. "Estou destinada a afastar todos que amo?", pensou, encarando as velas tremulando suavemente. A barganha que fizera, o poder que carregava, tudo parecia conspirar contra a sua paz.

Giovanni era diferente. Ele não se afastava por medo, mas por uma necessidade profunda de provar seu valor. Não para ela, mas para si mesmo. O peso que ele carregava, o de não ser capaz de protegê-la como gostaria, era palpável em cada olhar, cada palavra. Kamária entendia, mas isso não a acalmava. Levantou-se de forma abrupta, como se quisesse afastar a sensação de solidão que teimava em persegui-la.

Giovanni caminhava apressado pelas ruas ainda agitadas de Porto Cantante, determinado a encontrar o ferreiro que lhe fora recomendado por um dos moradores. O peso das peças danificadas que ele carregava, sujas e amassadas, parecia aumentar a cada passo, como se refletissem não apenas o estado físico de seu equipamento, mas também o desgaste de sua alma. As marcas do envenenamento que quase o levara à morte ainda estavam impressas nas partes corroídas da armadura que trazia. Mesmo assim, sua expressão permanecia firme, os olhos fixos no caminho à frente, cada batida do coração ressoando como um lembrete de que precisava seguir em frente.

As ruas de Porto Cantante estavam cheias de vida, apesar da destruição ainda visível em algumas esquinas. Pessoas iam e vinham, suas conversas ecoando nas paredes de pedra que cercavam a cidade. O cheiro de madeira queimada, misturado ao aroma salgado do rio Innis, impregnava o ar. Os sons dos vendedores anunciando mercadorias e das rodas de carroças que passavam pelas ruas de paralelepípedos se misturavam em um murmúrio constante, criando uma sinfonia de cidade reconstruída. Giovanni respirava fundo, tentando afastar o cansaço e a ansiedade. Ele tinha um propósito agora, e não poderia se distrair.

Finalmente, após algumas perguntas e direções dadas por rostos curiosos e desconfiados, Giovanni encontrou a forja nos arredores da cidade. O lugar estava isolado do caos central de Porto Cantante, com um caminho de pedras irregulares levando a uma construção robusta de madeira e pedra. De longe, o som rítmico do martelo contra o metal já se fazia ouvir, reverberando pelo chão como batidas de um coração metálico. As chamas da fornalha brilhavam intensamente dentro da forja, lançando reflexos dourados e alaranjados nas ferramentas penduradas nas paredes, e uma fumaça densa saía da chaminé de pedra, espiralando para o céu noturno.

Giovanni parou por um momento na entrada, observando o local. O calor era quase opressivo, uma onda que saía da fornalha e batia contra seu rosto, fazendo sua pele formigar. O cheiro de ferro quente e carvão queimado dominava o ar. Ele sentiu o suor brotar na testa, mas não hesitou em avançar.

Dentro da forja, Korin estava concentrado em seu trabalho. O ferreiro tainniano era um homem de meia-idade, de pele morena e braços grossos e musculosos, moldados por anos de trabalho árduo. Seu corpo parecia uma extensão natural da fornalha, movendo-se com a precisão de alguém que dominava seu ofício. Os cabelos negros curtos estavam umedecidos de suor, assim como a barba espessa e bem aparada, que se mexia suavemente enquanto ele bufava com o esforço. O martelo que ele usava parecia uma extensão de sua própria mão, subindo e descendo com ritmo constante enquanto ele moldava uma lâmina incandescente sobre a bigorna. Os olhos de Korin brilhavam à luz das chamas, concentrados no metal à sua frente, mas havia uma vivacidade neles, como se ele estivesse sempre atento ao ambiente ao seu redor, apesar do foco no trabalho.

Giovanni observou por alguns segundos, impressionado pela força e habilidade do homem. A forja inteira parecia pulsar com a energia de Korin, como se cada batida de seu martelo fosse uma extensão do próprio lugar. Ele limpou o suor da testa, sentindo o calor aumentar à medida que se aproximava, mas manteve-se firme.

Quando Korin finalmente notou sua presença, levantou o olhar por um breve momento, sem parar de trabalhar, mas o suficiente para avaliá-lo. Seus olhos escuros viajaram rapidamente do rosto de Giovanni até o equipamento destruído que ele trazia, observando com um olhar clínico, sem esconder o leve desdém.

— Veio tentar vender isso? — perguntou Korin, finalmente, sem disfarçar a dureza em sua voz. Seu tom não era rude, mas carregava a franqueza de alguém que não tinha tempo a perder. O martelo parou de bater, e ele limpou o suor da testa com as costas da mão calejada, deixando uma marca de fuligem em sua pele.

Giovanni apertou os punhos. Sabia que seu equipamento estava em péssimo estado, mas mesmo assim, precisava tentar. Precisava de algo novo, algo que o ajudasse a se reerguer e ser útil a Kamária. Ele respirou fundo, controlando a frustração crescente dentro de si.

— Eu preciso de algo que funcione — respondeu Giovanni, sua voz carregando o peso da urgência. — Isso aqui... não vale mais nada. Mas se puder me ajudar, eu farei o que for preciso.

Korin arqueou uma sobrancelha, interrompendo o trabalho e cruzando os braços musculosos enquanto avaliava Giovanni de forma mais cuidadosa. O silêncio que seguiu foi longo o suficiente para que Giovanni sentisse o peso da análise do ferreiro. Ele não estava apenas olhando o estado físico das peças, mas também avaliando o jovem à sua frente. Os olhos de Korin brilharam brevemente, reconhecendo algo familiar — uma chama, uma determinação que ele respeitava. Um sorriso quase imperceptível surgiu no canto de seus lábios.

— Isso aqui realmente não vale nada — disse Korin finalmente, balançando a cabeça enquanto examinava o equipamento danificado. Ele soltou um longo suspiro e colocou as peças de lado com cuidado. — Mas... — Ele parou, observando Giovanni com mais seriedade. — Talvez eu tenha algo para você.

Korin se afastou por um momento, caminhando até uma prateleira de metal no fundo da forja, onde várias armaduras e armas antigas estavam empilhadas. Ele tirou uma armadura de couro e metal, desgastada pelo tempo, mas ainda sólida e resistente. O brilho opaco do metal refletia a luz das chamas, lançando sombras vacilantes nas paredes de pedra. Korin colocou a armadura sobre a mesa, o som metálico ecoando na oficina.

— Isso pode te servir por enquanto — disse ele, cruzando os braços novamente sobre o peito. Seus olhos estreitos fixaram-se nos de Giovanni. — Mas não é de graça.

Giovanni deu um passo à frente, seus olhos fixos no equipamento. Ele podia sentir o calor da fornalha no rosto, e o cheiro de ferro queimado e suor era quase opressor. Ele sabia que não tinha muito o que oferecer, mas antes que pudesse perguntar o preço, Korin continuou.

— Preciso de algo em troca — disse o ferreiro, lançando um olhar avaliador para os machucados ainda visíveis de Giovanni. — Um minério raro, quase impossível de ser minerado, chamado Lumen. Brilha como a lua cheia nas noites escuras, mas poucos conseguem extraí-lo. Só aqueles que têm verdadeira determinação. Você vai ter que buscá-lo pra mim.

Giovanni franziu o cenho, confuso.

— Lumen? Nunca ouvi falar. Onde posso encontrá-lo?

Korin soltou um leve suspiro, como se esperasse essa resposta. Ele deu um passo para trás e, com um gesto, apontou para as montanhas ao norte.

— Nas profundezas de uma caverna antiga, nas montanhas um pouco ao norte. É um lugar perigoso, já aviso. A caverna fica escondida, e muitos já tentaram minerar o Lumen... mas poucos voltaram.Muitos também não gostam de trabalhar com esse minério mas, para mim, as melhores armas nascem dele. Você entenderá o que estou falando quando o ver

Giovanni assentiu, sentindo o peso da missão proposta, mas sem hesitar.

— E como saberei que é o Lumen? — perguntou, buscando qualquer detalhe que o ajudasse.

Korin sorriu, um sorriso curto e enigmático.

— Você saberá, garoto. O Lumen brilha com uma luz que parece viva. Azulada, como o reflexo da lua na água calma. Se você o vir, vai reconhecer.

Giovanni respirou fundo. As palavras de Korin ecoavam em sua mente, mas ele estava decidido. Mesmo sem saber exatamente o que encontraria, sua vontade de provar seu valor o impulsionava.

 — Korin fez uma pausa, seus olhos sérios. — É perigoso, especialmente para alguém no seu estado. Mas... se você trouxer o minério, farei uma armadura e uma espada para você com parte dele. O resto ficará comigo para eu fazer peças para outras pessoas.

Giovanni assentiu de imediato, sem hesitar. Ele sabia que seria um desafio, mas sua determinação superava qualquer receio. Ele não tinha tempo para dúvidas. Precisava provar que era capaz. Que podia estar ao lado de Kamária como um igual, não uma sombra.

— Eu trarei o Lumen para você — disse Giovanni, estendendo a mão para Korin, com firmeza. O ferreiro segurou a mão dele, apertando-a com força. O respeito entre os dois se formou naquele aperto de mãos. Korin esboçou um sorriso, um misto de admiração e ceticismo.

— Não demore muito — alertou Korin, soltando a mão de Giovanni. — O festival vai começar logo, e eu não posso esperar por você para sempre.

Giovanni deu um último olhar para Korin antes de sair, determinado a cumprir sua promessa. O som das chamas e dos martelos ecoava atrás de si enquanto seus passos rápidos o levavam de volta pelas ruas de Porto Cantante, agora envoltas em um silêncio pesado à medida que a noite caía completamente. Ele sabia que a jornada que o aguardava seria difícil, mas seu coração estava firme, e sua alma, disposta a enfrentar qualquer perigo que surgisse no caminho.

Na floresta, Giovanni avançava lentamente. A trilha estreita e quase invisível, que Korin havia descrito, serpenteava entre árvores altas e densas, o chão coberto de folhas secas e raízes que pareciam querer prendê-lo a cada passo. O som de seus passos era abafado pela terra macia sob os pés, e a lua alta no céu era sua única companhia.

A picareta que segurava parecia mais pesada do que o habitual, e cada vez que Giovanni trocava de mão, um leve tremor percorria seus braços. Seus músculos, ainda em recuperação, protestavam silenciosamente. Giovanni parou por um momento, respirando fundo, forçando-se a ignorar o cansaço crescente. "Não posso falhar agora", pensou, apertando os punhos ao redor do cabo da picareta.

A caverna apareceu à sua frente após quase uma hora de caminhada. Era uma pequena abertura, escondida na colina, quase imperceptível à primeira vista. Mas ali, nas profundezas, ele sabia que o Lumen aguardava. "O presente das cinco deusas", como Korin havia mencionado, era um minério raro, e Giovanni sabia que não seria fácil extraí-lo.

A caverna parecia engolir a luz da lua assim que Giovanni entrou, deixando o ambiente envolto em uma escuridão sufocante. O ar, denso e úmido, parecia grudar em sua pele, e cada respiração se tornava mais difícil do que a anterior, como se a própria caverna estivesse viva, testando sua determinação. O silêncio era perturbador — não havia o som de pássaros, nem de vento, apenas o leve eco dos próprios passos de Giovanni, reverberando de volta para ele nas paredes de pedra fria, como se estivesse sendo observado.

O caminho à frente era estreito e irregular, com a luz fraca de sua tocha apenas iluminando alguns metros à frente. As sombras criadas pelo fogo tremeluzente dançavam nas paredes, distorcendo a percepção de espaço e tempo, enquanto a opressão do ambiente se intensificava a cada passo. A caverna era vasta, mas Giovanni se sentia comprimido, cercado por camadas intermináveis de pedra que pareciam pesar mais a cada metro avançado.

O ar estava pesado, saturado com a umidade que escorria das paredes, e a sensação de isolamento se aprofundava conforme ele se afastava da entrada. A cada respiração, Giovanni sentia o cheiro metálico da terra misturado ao ar úmido e quase estagnado, como se o oxigênio ali fosse limitado, compartilhado com gerações de pedras ancestrais que guardavam os segredos da caverna. O suor em sua testa escorria lentamente, mas não apenas por causa do esforço físico — era o ambiente que parecia devorá-lo, apertando sua mente e seu corpo, até que ele tivesse que parar e recuperar o fôlego.

Ele encostou-se brevemente a uma das paredes rochosas, fechando os olhos, tentando acalmar a batida frenética de seu coração. Mas a parede estava fria e pegajosa com a umidade, fazendo-o recuar. A sensação opressiva de estar completamente só ali dentro, separado do vasto mundo lá fora, o golpeou com força. A escuridão era tão densa que parecia viva, quase tangível, espreitando além da luz da tocha, como uma presença invisível que o vigiava.

Conforme avançava mais fundo, a tocha de Giovanni tremeluzia em um ritmo incômodo, lançando sombras de formato estranho nas superfícies irregulares. Às vezes, ele tinha a impressão de que algo se movia na periferia de sua visão, um lampejo de movimento que desaparecia assim que ele tentava focar. O silêncio opressor era quebrado apenas pelo som de suas botas raspando contra a pedra, o gotejar constante de água que ecoava de algum lugar nas profundezas desconhecidas, e o ocasional rangido das próprias paredes, como se a caverna estivesse viva, respirando junto com ele.

A sensação de isolamento o envolveu de tal forma que ele começou a sentir a falta do vento que soprava nas montanhas lá fora, a falta dos sons naturais que o lembravam que o mundo ainda existia. Aqui, dentro da caverna, o tempo parecia se distorcer, e Giovanni começou a perder a noção de quanto tempo havia se passado desde que ele entrara. O cansaço começava a pesar mais sobre ele, e a picareta que carregava parecia dobrar de peso em suas mãos.

Ele avançou, quase que automaticamente, até que finalmente avistou o brilho do Lumen. No entanto, o ambiente opressivo não dava trégua. O brilho azul do minério contrastava violentamente com a escuridão esmagadora ao redor. O minério parecia uma promessa distante de luz, mas a caverna ao redor parecia ciumenta de sua própria escuridão, tornando-se mais ameaçadora conforme ele se aproximava de sua meta. A cada golpe na rocha, o som ecoava de volta com força redobrada, amplificando o isolamento e o perigo.

O primeiro golpe na pedra foi firme, mas reverberou por todo o seu corpo. Ele sentiu a dor correr pelos músculos, lembrando-o de que ainda não estava completamente recuperado. "Não pare", ele se disse, ignorando a leve tontura que ameaçava seu foco. Ele golpeou novamente, e mais uma vez, cada movimento exigindo mais de seu corpo do que ele esperava.

A cada golpe, Giovanni sentia uma batalha interna se desenrolar. "Será que sou forte o suficiente?" Seus pensamentos corriam soltos, misturando-se com o som dos ecos na caverna. "Kamária confiou em mim, mas e se eu falhar? Se eu não for o bastante?" O peso de sua insegurança se somava ao cansaço físico, criando uma barreira invisível.

Mas então, ele se lembrou do sorriso dela. O brilho em seus olhos dourados. Giovanni respirou fundo, reunindo todas as suas forças. Ele não estava ali apenas por ele. Estava ali por ela, por quem acreditava nele. "Eu não vou falhar", murmurou, enquanto levantava a picareta novamente.

O som do metal contra a rocha mudou de tom, mais suave, quase como um estalo. Giovanni parou, surpreso, e viu que o Lumen começava a se soltar da parede. Um sorriso breve passou por seus lábios. "Está funcionando..."

Mas a caverna parecia não querer deixar que ele tivesse a vitória sem desafios. Assim que a primeira pedra de Lumen caiu em sua mão, o chão começou a tremer levemente. Giovanni olhou em volta, sentindo a terra sob seus pés estremecer. Ele sabia o que estava por vir. "Não..." murmurou. "Não agora."

Rápido, ele recolheu o minério que pôde, enfiando-o na bolsa improvisada que trouxera, enquanto as paredes ao redor começavam a desmoronar. As pedras caíam com estrondos ameaçadores, e Giovanni sentiu a urgência acelerar seu coração. O cansaço foi empurrado para o fundo da mente enquanto ele corria em direção à saída.

A cada passo, ele sentia a dor pulsar em seus músculos, seus pulmões ardiam com o esforço, mas ele não podia parar. "Vamos... apenas mais um pouco", pensava, enquanto a caverna desmoronava atrás dele. Ele tropeçou em uma pedra solta, sentindo uma dor aguda no joelho, mas se forçou a levantar. Não havia tempo para hesitar.

Nos últimos metros, ele se lançou para fora da caverna, rolando na terra firme enquanto o som do colapso final da caverna ecoava atrás dele. Giovanni permaneceu deitado por um momento, ofegante, com o corpo coberto de poeira e suor. Ele havia conseguido. O Lumen estava em suas mãos

Giovanni finalmente escapara da caverna, o coração ainda batendo freneticamente no peito. Seu corpo estava coberto de suor e poeira, com a respiração ofegante enquanto o ar fresco da noite invadia seus pulmões, oferecendo um breve alívio. No entanto, o peso da missão recém-cumprida logo se fez sentir. A bolsa, agora cheia de fragmentos de Lumen, parecia pesar o dobro do que imaginara. Cada pedaço do minério brilhante carregava consigo o esforço extenuante de ser extraído, e agora esse peso não era apenas emocional, mas físico.

Ele se levantou lentamente do chão, os joelhos trêmulos protestando contra o movimento, e ajeitou a bolsa sobre os ombros, sentindo o impacto imediato do peso no seu corpo. Um tremor percorreu suas pernas, mas ele sabia que não poderia parar. Giovanni respirou fundo, tentando se recompor. O Lumen estava seguro, mas a jornada estava longe de terminar.

A cada passo de volta para Porto Cantante, a luta aumentava. Seus braços ardiam sob o peso da bolsa, e seus músculos, ainda se recuperando dos ferimentos anteriores, protestavam. A dor crescia como uma corrente surda e constante. Giovanni sentia uma pressão na cabeça, uma dor pulsante, como se o Lumen estivesse drenando sua energia vital a cada segundo.

Ele parou para respirar, encostando-se a uma árvore para se recompor, as palmas das mãos pressionadas contra a superfície áspera do tronco. "Só mais um pouco," ele pensava, tentando focar na imagem de Kamária, nos olhos dourados dela, e na confiança que ele não podia quebrar. Isso o fazia seguir em frente, mesmo quando o corpo falhava.

Após o que parecia uma eternidade de luta e dor, Porto Cantante finalmente apareceu à distância. As luzes da cidade eram como um farol, e, mesmo exausto, Giovanni sabia que estava perto. Com a última reserva de forças, ele seguiu em direção à forja de Korin.

Quando ele alcançou a forja, seus passos eram arrastados e pesados, mas ele se forçou a continuar. O som constante do martelo de Korin ecoava, e a fumaça que saía da chaminé iluminada pelas chamas parecia convidá-lo. Giovanni deu um último passo e bateu na porta com os nós dos dedos, sentindo o peso do cansaço o puxar para baixo.

A porta se abriu, e Korin, ao ver Giovanni naquele estado, com a bolsa cheia de Lumen, imediatamente percebeu o esforço que ele havia feito.

Você conseguiu, garoto... — disse Korin com um leve sorriso, seus olhos brilhando de admiração. — Mas não se force mais. Está exausto.

Giovanni, ofegante, apenas assentiu, tentando manter-se de pé.

Vamos, eu levo você para casa, — disse Korin, segurando Giovanni pelo ombro e o guiando com cuidado para longe da forja.

O peso de Giovanni era notável, e seus passos vacilantes mostravam o quão perto de seu limite ele havia chegado. À medida que se aproximavam das ruas mais tranquilas de Porto Cantante, Giovanni começou a sentir o desconforto de chegar à casa de Kamária nesse estado. Ele sabia que Kamária estava em casa esperando por ele, e, apesar de toda a exaustão que sentia, não queria que ela o visse tão fraco e vulnerável.

Quando estavam a poucos metros da casa, Giovanni ergueu a mão, pedindo que Korin parasse.

Espere..., — disse Giovanni com a voz baixa, ofegante, mas firme. — Eu consigo daqui. Não quero que ela me veja assim.

Korin parou e olhou para ele, uma mistura de surpresa e respeito cruzando seu rosto. Ele entendeu o desejo de Giovanni de preservar sua dignidade diante de Kamária. Sem discutir, o ferreiro assentiu e deu um passo para trás, soltando o braço de Giovanni.

Tudo bem, garotodisse Korin.Mas não se esforce demais. Descanse. Eu estarei pronto com sua armadura em breve.

Giovanni sorriu levemente, agradecendo silenciosamente pela compreensão de Korin. Ele se endireitou o máximo que pôde, tentando esconder o quanto seu corpo doía, e fez o restante do caminho até a casa sozinho.

Ao chegar à porta, Giovanni respirou fundo, sentindo o peso em seus ombros, não apenas do Lumen, mas de toda a missão que havia cumprido. Ele sabia que Kamária estava do outro lado, e isso lhe dava forças para compor-se, mesmo que estivesse exausto.

Quando Giovanni entrou pela porta da casa, a visão de Kamária na cozinha foi um alívio profundo que ele não esperava sentir tão intensamente. Ela estava de costas para ele, concentrada em cortar ervas, e por um breve momento ele apenas ficou ali, observando-a em silêncio. O aroma das ervas frescas misturava-se com o calor reconfortante da casa, criando um contraste com a jornada desgastante que ele acabara de enfrentar.

Kamária, ao perceber sua presença, parou de cortar, mas não se virou de imediato. Ela sabia que ele estava lá, mas algo em sua postura demonstrava que também sabia que ele precisava de tempo para processar o que tinha vivido. Quando finalmente falou, a voz dela era calma, mas carregada de sentimentos profundos.

— Você não precisa me dar satisfações, Giovanni — disse ela, a voz suave mas firme. Ela hesitou por um momento, a faca ainda em suas mãos, sem olhar para ele. — Eu entendo o que você quer... só... não suma assim novamente.

Essas palavras, embora ditas com a gentileza habitual de Kamária, acertaram Giovanni em cheio. Não era uma reprimenda, mas uma confissão de preocupação que ela tentava esconder sob a calma. Ela não estava simplesmente pedindo para ele ficar. Estava dizendo que a ausência dele a afetava mais do que ela estava disposta a admitir.

Giovanni respirou fundo, sentindo o peso dessas palavras dentro de si. Ele percebeu, então, que sua jornada em busca do Lumen não era apenas sobre provar sua força ou se sentir útil. Era uma maneira de mostrar a Kamária que ele estava ao lado dela, disposto a se sacrificar pelo bem-estar dela, assim como ela havia feito por ele tantas vezes. Cada golpe que ele deu na pedra na caverna, cada momento em que lutou contra a exaustão e o medo, tudo isso havia sido motivado por ela.

“Eu não posso mais ser aquele que só recebe,” pensou Giovanni, com uma dor leve no peito. Ele não queria ser apenas alguém para quem Kamária cuidasse, alguém que ela precisasse proteger. Ele queria ser digno de estar ao lado dela, de enfrentarem juntos os desafios que o futuro traria.

Sem perceber, ele deu alguns passos em direção a ela. O chão de madeira rangeu levemente sob seu peso, e a sensação da terra e do suor que ainda cobriam sua pele o fez perceber o quanto estava desgastado. Ele queria falar, queria explicar o porquê de ter saído, mas as palavras simplesmente não vinham. Tudo o que ele sentia era o desejo de estar ali, ao lado dela, e deixar que ela soubesse, de alguma forma, o quanto ela significava para ele.

Kamária, como se sentisse a proximidade dele, abaixou a faca e se virou lentamente para encará-lo. Quando seus olhos se encontraram, o silêncio entre eles parecia carregar muito mais do que qualquer diálogo poderia expressar. Ela o olhou de cima a baixo, vendo a exaustão em seu rosto, o pó da caverna ainda preso em suas roupas, e o cansaço evidente em seu corpo. Mas também havia algo mais ali — uma chama em seus olhos, algo que ele nunca havia expressado com tanta clareza antes.

Por um momento, o tempo pareceu desacelerar. Giovanni, sem saber ao certo o que fazer, deu mais um passo à frente, até que estivesse a poucos centímetros dela. Ele ergueu a mão, hesitante, e tocou suavemente o braço de Kamária. Era um gesto pequeno, mas carregado de significado. Ela não se afastou; em vez disso, inclinou-se levemente para ele, como se aquele toque fosse uma âncora para ambos.

— Eu... não queria te preocupar — murmurou Giovanni, finalmente encontrando as palavras, embora soubesse que não eram suficientes para expressar o que realmente sentia. — Eu só... eu precisava fazer isso. Não por mim... mas por você. Para provar que eu também posso estar aqui. Que eu sou alguém em quem você pode confiar, alguém que está ao seu lado, e não apenas alguém que precisa ser protegido.

Kamária respirou fundo, absorvendo o que ele disse. O brilho suave de seus olhos dourados parecia refletir as chamas suaves das velas, mas havia uma ternura ali que Giovanni raramente via de forma tão clara. Ela não respondeu de imediato, mas seus lábios formaram um pequeno sorriso — não de triunfo, mas de aceitação.

— Giovanni... — começou ela, com a voz quase num sussurro. — Eu nunca pedi que você provasse nada para mim. Nunca quis que você se sentisse assim... Mas entendo o que você fez, e agradeço. De verdade.

Ela se aproximou mais, e naquele momento, não havia necessidade de palavras. Estavam juntos, compartilhando um silêncio cheio de significado, onde cada batida de seus corações parecia ecoar na sala.

Giovanni, ainda sujo e exausto, sentiu uma paz inesperada tomando conta de si. Ele não precisava dizer mais nada. Ela compreendia, e ele sabia que Kamária também sentia o mesmo em relação a ele. Naquele momento, não importava o que estava por vir — eles enfrentariam juntos, lado a lado, como sempre deveria ter sido.

O som do fogo crepitando na lareira era a única trilha sonora enquanto os dois permaneciam ali, próximos, compartilhando um momento de profunda conexão. Giovanni percebeu, então, que não era apenas força física ou habilidades que Kamária precisava dele. Era sua presença, sua dedicação, seu coração. E isso, ele sabia, ele sempre poderia oferecer.

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