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Sob o véu da lua, um coração busca
força enquanto o festival se aproxima e antigos laços começam a se esticar.
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O céu, ainda coberto pelas sombras do funeral, se
estendia acima de Porto Cantante, com a lua observando como uma testemunha
silenciosa. Faziam dois dias desde a despedida oficial dos mortos, e o cenário
de destruição e reconstrução ainda era visível em cada esquina, onde destroços,
escombros e vidas despedaçadas se entrelaçavam. Porto Cantante se reerguia
lentamente com a ajuda de sua comunidade, que se dedicava a limpar as ruas e
cuidar das pessoas acamadas. As mãos calejadas dos moradores se estendiam umas
às outras, num esforço quase ritualístico de restabelecer o que havia sido
perdido.
Kamária, por sua vez, estava focada em Giovanni,
que se recuperava de maneira constante. Já não era mais o homem fraco e febril
que precisara tanto dela. Agora, ele caminhava pela sala com mais firmeza,
testando seus limites com tarefas leves, como levantar pequenas caixas e
organizar o que havia restado de seu equipamento. Embora ainda sentisse os
resquícios da fraqueza, sua determinação de não ser mais um fardo era palpável.
Kamária observava tudo isso em silêncio, dividida entre a satisfação de vê-lo
melhorar e a preocupação de que ele estivesse se forçando demais.
— Eu me sinto... incomodado — disse Giovanni,
interrompendo o silêncio que reinava. Ele estava sentado, mas suas mãos, agora
mais fortes, descansavam sobre seus joelhos com uma tensão que Kamária notou de
imediato. — Não consigo aceitar o quanto precisei de você para... tudo. — Ele
virou-se, os olhos buscando os dela, como se esperasse que ela dissesse algo
que aliviasse o peso que carregava.
Kamária parou o que estava fazendo e o observou por
um momento, sem falar. Seus olhos, dourados como a luz de Lar-Torvis,
percorreram o rosto dele, mas não havia julgamento. Apenas uma aceitação
tranquila, misturada a uma compreensão silenciosa.
— Você não precisou de mim porque quis, Giovanni —
ela respondeu, suavemente. — Eu estava ao seu lado porque era o que precisava
ser feito. E faria tudo de novo. Não é fraqueza precisar de ajuda.
Giovanni continuou, como se suas palavras não
tivessem sido suficientes para acalmar o turbilhão dentro dele. — Eu deveria
estar ao seu lado, ajudando, não sendo cuidado. Quero retribuir de alguma
forma... Acompanhar você no festival, fazer algo útil. Mas... — Ele hesitou,
sua voz carregada de frustração. — Ainda me sinto fraco, mesmo com essas
pequenas melhoras.
Kamária se aproximou, sua presença sempre calma.
Ela colocou a mão delicadamente em seu ombro, sentindo a tensão sob sua pele.
Ele olhou para ela com olhos cheios de perguntas que não conseguia expressar.
— Giovanni — disse ela, sua voz cheia de suavidade
e compreensão. — Eu entendo o que você sente, mas... as coisas não são tão
simples. Os innisianos não estão felizes comigo. — Ela fez uma pausa,
escolhendo as palavras com cuidado. — Eles me culpam pelo que aconteceu, e essa
raiva pode atingir você também, se tentar participar ativamente do festival.
Antes que Giovanni pudesse responder, passos
pesados ecoaram pela casa. Um dos anciãos de Porto Cantante, Filaris, apareceu
à porta, seu semblante sério e olhos estreitos. Ele havia ajudado a organizar
os preparativos do festival, mas desde o envenenamento de Giovanni e a barganha
que Kamária fez, Filaris e muitos outros innisianos se mantinham à distância.
— Kamária — ele começou, sem disfarçar a tensão em
sua voz —, sua ajuda seria bem-vinda na praça. Mas devo ser direto. Há quem não
aprove a sua presença lá.
O olhar de Filaris se fixou em Giovanni por um
breve momento antes de voltar-se para Kamária, suas palavras carregando um
julgamento silencioso. Kamária sentiu o peso daquele olhar, mas manteve a
compostura.
— Eu irei — respondeu ela, sem hesitação, mas
sentindo a tensão aumentar. Sabia que as cicatrizes entre ela e o povo de Innis
não cicatrizariam tão cedo.
Quando Filaris se afastou, o silêncio entre
Giovanni e Kamária era palpável. Ele se levantou lentamente, seus olhos fixos
nos dela.
— E eu? — Giovanni perguntou, sua voz carregada de
frustração e uma certa amargura. — Devo ficar aqui... apenas observando?
Kamária balançou a cabeça, entendendo o dilema
dele.
— Não se trata de apenas observar, Giovanni — disse
ela, sua voz firme, mas gentil. — Estamos lidando com forças além do que você
pode ver. Eu prometo que estarei de volta antes do festival, mas por agora...
você precisa se preparar para enfrentar o que está por vir.
Giovanni apertou os punhos, claramente incomodado
com a situação. Ele mordeu o lábio, desviando o olhar para o chão, seus
pensamentos um turbilhão de frustração e desejo de provar que era mais do que
alguém a ser cuidado. Ele não era mais fraco, e precisava mostrar isso para si
mesmo e para Kamária.
— Eu não consigo ficar aqui, simplesmente...
observando — disse ele, a frustração em sua voz tornando-se mais evidente. —
Não quero ser apenas alguém que você precisa cuidar. Eu... eu quero ser útil
para você, Kamária. Não quero depender de você para tudo.
Kamária, por sua vez, o olhou com ternura. Ela
entendia seu orgulho, mas também sabia que Giovanni não estava tão distante de
alcançar o que desejava. Sua recuperação estava mais rápida do que o esperado,
e o fato de ele querer ajudar mostrava que, ao menos mentalmente, ele já estava
pronto para ser mais ativo.
— Eu sei que você quer ser útil — ela disse,
mantendo a calma que sempre lhe era característica. — E você vai ser. Não
precisa provar isso agora. Mas seu corpo ainda está se fortalecendo, e não há
vergonha nisso. Em breve, você estará ao meu lado, como sempre quis. Mas dê
tempo ao tempo, Giovanni. Não se apresse.
Giovanni sabia que Kamária tinha razão, mas a
ansiedade em seu peito ainda fervilhava. Ele não queria ser um fardo, não
queria que ela se sentisse sobrecarregada por sua presença. Ele queria caminhar
ao lado dela, forte e capaz, como sempre imaginou que deveria ser.
— Não é só sobre força física — continuou Kamária.
— Quando a hora chegar, você estará pronto. E até lá, apenas estar aqui ao meu
lado já significa mais do que você imagina.
Giovanni suspirou, sentindo o peso da frustração
começar a se dissipar. Ele sabia que, no fundo, não estava tão longe de
recuperar completamente suas forças, mas a impaciência o corroía. A necessidade
de ser útil, de ser forte, ainda ardia dentro dele, mas ele começou a entender
que seu valor não estava apenas em suas capacidades físicas, mas também na
conexão que compartilhava com Kamária.
— Eu não quero ser só alguém a quem você tem que
cuidar — repetiu ele, mais baixo, quase como se falasse consigo mesmo.
Kamária sorriu, compreendendo a profundidade de
suas palavras. Ela sabia que Giovanni era orgulhoso e que sua recuperação não
era apenas física, mas emocional. Ele precisava se sentir parte do que
acontecia ao redor, e ela o entendia.
— Eu sei — disse ela suavemente. — E não será
assim. Você é parte de mim, Giovanni. E eu estou aqui por você, tanto quanto
você está aqui por mim. Não há dívida entre nós. Há apenas o que somos um para
o outro.
Giovanni relaxou um pouco mais, sentindo-se
confortado pelas palavras dela. Ele sabia que ainda tinha um caminho a
percorrer, mas agora, com Kamária ao seu lado, sentia que poderia enfrentar o
que viesse. A vontade de ser útil, de ser forte, ainda ardia dentro dele, mas
ele começou a entender que seu valor não estava apenas em suas capacidades
físicas, mas também na conexão que compartilhava com Kamária.
Enquanto o festival se aproximava, e a cidade de
Porto Cantante se preparava para os próximos dias, Giovanni se sentiu mais
confiante de que, em breve, estaria ao lado de Kamária, não apenas como alguém
que precisava ser cuidado, mas como alguém forte o suficiente para caminhar com
ela, como sempre desejou.
Kamária, no entanto, sentia uma leve inquietação crescer
dentro de si. Zaki. Havia uma sensação estranha, um tremor que ela não
conseguia ignorar. Fazia dias que ele não voltava, e mesmo que soubesse que ele
poderia estar com Charlotte, a filha do padeiro, algo parecia errado. A
ausência dele começava a pesar em seu coração, especialmente com o festival se
aproximando.
Enquanto Giovanni lutava com sua própria
impotência, Kamária sentiu uma ausência desconcertante. Fechando os olhos, ela
tentou se conectar com seu irmão, mas tudo o que sentiu foi um vazio inquietante,
uma ausência que a perturbava profundamente. "Por que ele ainda não
voltou?", pens
ou ela, sentindo o peso da incerteza. Algo estava
errado, e a presença reconfortante de Charlotte não poderia justificar uma
ausência tão longa. "Será que Zaki está em perigo?"
As preocupações de Kamária se misturavam à tensão
que crescia em Porto Cantante com a aproximação do festival. O vento soprava
mais forte, anunciando a chegada dos clãs e o início de algo maior, algo
inevitável. Kamária sabia que o festival não seria apenas uma celebração da
primavera, mas um ponto de virada, tanto para a cidade quanto para sua própria
jornada.
Com o festival a poucos dias de distância, os
preparativos se intensificavam. As ruas ainda estavam parcialmente destruídas,
e a pressão sobre Kamária era palpável. Ela sabia que sua presença no evento
seria observada com desconfiança, e a tensão entre os innisianos e ela só
cresceria. Mas não havia escolha. Ela tinha que participar, e Giovanni, por
mais que quisesse, ainda não estava pronto.
Ela se virou para ele, que agora olhava para o
chão, os punhos cerrados em frustração. Kamária sentiu a dor dele, mas também
sabia que ele tinha um papel importante a cumprir, mesmo que ainda não soubesse
qual.
— Giovanni — disse ela suavemente, mas com uma
firmeza que fez com que ele levantasse os olhos para encontrá-la. — Eu sei que
você quer ajudar, e isso vai acontecer. Mas primeiro, você precisa se recuperar
completamente. O que estamos enfrentando não é algo que se resolva apenas com força
física.
Ele franziu a testa, mas assentiu, percebendo que
ela estava certa. O festival estava chegando, e ele tinha que se preparar,
mesmo que isso significasse aceitar sua condição atual por enquanto.
Enquanto a lua continuava a iluminar Porto Cantante
e o som do rio Innis se misturava ao murmúrio dos preparativos para o festival,
Kamária e Giovanni sabiam que o que estava por vir não seria fácil. Mas,
juntos, enfrentariam o que quer que o destino lhes reservasse. E, ao fundo de
tudo isso, o mistério da ausência de Zaki e o crescente desconforto de Kamária
pairavam como uma sombra silenciosa sobre eles.
Giovanni ficou em silêncio por alguns instantes
depois da conversa com Kamária. O peso de suas palavras ainda pairava no ar,
mas sua mente estava em outro lugar, traçando um plano. Ele não podia continuar
dependendo dela. Se havia algo que ele podia fazer, iria encontrar um jeito de
ser útil, nem que precisasse sair dali e se virar com o que restava de suas
forças.
Com uma determinação renovada, Giovanni se levantou
lentamente, ignorando o desconforto que ainda percorria seu corpo. Seus olhos
foram até o canto da sala, onde seu equipamento destruído estava encostado na
parede. Peças de armadura danificadas, ferramentas quebradas, tudo coberto pela
poeira da última batalha. Era quase um reflexo do que ele sentia por dentro,
mas ele sabia que não poderia deixar isso defini-lo.
Sem dizer uma palavra, ele caminhou até o
equipamento. Kamária o observou de longe, sem intervir. Giovanni pegou o que
restava de sua espada, a lâmina rachada refletindo um brilho fraco à luz da lua
que entrava pela janela. Ele a colocou de volta na bainha, ainda que soubesse
que não serviria para muito, e reuniu o restante de suas coisas – peças de
armadura amassadas, as botas desgastadas e a adaga quebrada. Mesmo em seu
estado atual, aquilo era parte de quem ele era, e ele sabia que encontraria um
jeito de consertar tudo.
Com os braços carregados dos destroços de seu
equipamento, Giovanni respirou fundo. Suas costas doíam, seus músculos
protestavam, mas ele não cederia à fraqueza. Ele abriu a porta da casa com um
empurrão firme e olhou para o céu, a lua alta e vigilante acima dele.
— Vou arranjar um jeito — murmurou para si mesmo,
sentindo o vento fresco no rosto.
Ele não sabia ainda para onde iria ou o que
exatamente faria, mas sua mente estava decidida. Precisava encontrar meios de
se reerguer, consertar o que estava quebrado, tanto no metal quanto dentro de
si. Sabia que Kamária precisava dele, mas também sabia que ela precisava de
alguém forte ao seu lado, alguém capaz de enfrentar o que estava por vir.
Giovanni deu um último olhar para a casa que havia
sido seu refúgio nos últimos dias. Não era uma despedida, mas sim uma promessa
silenciosa de que, quando voltasse, seria diferente. Ele se virou e começou a
caminhar pelas ruas de Porto Cantante, com o peso de seu equipamento destruído,
mas com o coração determinado a reconstruir não apenas suas ferramentas, mas a
si mesmo.
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