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Entre Promessas e Marés
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Mas Kamaria não era a única a sentir o chamado do Innis. Em terras distantes, além da neblina que escondia Alba Etérea, outros também ouviam o sussurro desse rio ancestral. Giovanni, em seu vilarejo isolado, vivia uma vida tranquila, sem saber que as mesmas águas que banhavam seu lar carregavam segredos e destinos tão vastos quanto o próprio mundo. O Innis, em sua sabedoria silenciosa, unia histórias que pareciam separadas, mas que, no fundo, eram parte de uma única correnteza. E a jornada de Giovanni, assim como a de Kamaria, estava apenas começando.
O rio Innis, cujas águas percorriam reinos e continentes, era muito mais do que uma simples passagem de correntes. Para os povos que habitavam suas margens, ele era um símbolo de ligação entre mundos, histórias, e destinos. Suas águas banhavam as terras de seres mágicos, como Kamaria, mas também fluíam pelos vilarejos humanos, como Arven. Diziam que o Innis sussurrava segredos antigos, e aqueles que sabiam escutá-lo sentiam o chamado de algo além da neblina que envolvia Alba Etérea.
Era como se o rio fosse uma ponte entre o conhecido e o desconhecido, carregando promessas e advertências, tecendo uma rede invisível que conectava histórias aparentemente distantes. Mas o Innis tinha seu próprio tempo, e seu fluxo silencioso guiava destinos de formas que poucos compreendiam.
Giovanni vivia uma vida tranquila em um pequeno vilarejo
chamado Arven, escondido entre colinas verdejantes e florestas densas,
distantes de qualquer grande cidade. Seus pais, Leandro e Elara, eram lendários
aventureiros, conhecidos por suas façanhas heroicas e suas incursões em terras
desconhecidas. Contudo, após anos de aventuras e perigos enfrentados, eles
haviam decidido se retirar dessa vida e buscar paz em Arven. A fama deles ainda
ecoava por reinos distantes, mas no vilarejo, eles eram apenas uma família
comum, vivendo da terra e desfrutando de uma vida rural simples e pacífica.
Giovanni cresceu rodeado de histórias extraordinárias sobre
os feitos de seus pais, mas para ele, a vida em Arven era tudo o que conhecia e
amava. Ele corria pelos campos, brincava com os animais e aprendia a trabalhar
com a terra, longe do caos do mundo exterior. Seus pais, embora sempre
vigilantes, mantinham aquela vida protegida e segura. O vilarejo, cercado por
florestas, montanhas, e riachos, parecia um refúgio perfeito. Giovanni nunca
imaginou que a paz ali poderia ser quebrada de forma tão brutal.
Uma noite, no entanto, o destino da família mudaria para
sempre.
Era um final de tarde como qualquer outro. O céu se tingia
de laranja e rosa, e Giovanni ajudava sua mãe, Elara, a recolher lenha enquanto
seu pai afiava uma velha espada de caça na entrada da casa. O vento soprava
suavemente, trazendo consigo o aroma fresco da floresta ao redor. Eles estavam
prestes a entrar para o jantar quando um som distante, porém ameaçador, cortou
o ar. Giovanni não reconheceu de imediato, mas seus pais, que possuíam o faro
aguçado de antigos guerreiros, congelaram.
Leandro ficou em silêncio por um momento, sua mão parando no
cabo da espada. Elara franziu o cenho, sentindo uma sensação que não
experimentava há muitos anos — um presságio de perigo iminente. Eles trocaram um
olhar rápido e preocupado. Giovanni notou o silêncio que se abateu sobre a casa
e o jeito que a expressão de seus pais mudou. Algo estava errado.
Antes que ele pudesse perguntar o que estava acontecendo,
seu pai, com uma calma que escondia uma tensão terrível, se aproximou dele e de
Elara.
— Elara, leve Giovanni — disse Leandro, em um tom sério. —
Agora.
O coração de Elara disparou. Ela sabia o que aquilo
significava. Os Cavaleiros das Sombras haviam os encontrado. Uma ordem secreta
e impiedosa de assassinos, mercenários e espiões, eles eram o tipo de ameaça
que Leandro e Elara esperavam nunca mais cruzar. Mas o passado havia alcançado
a família.
Elara não hesitou. Ela pegou Giovanni pela mão e o puxou
para dentro da casa. Seus olhos estavam arregalados, cheios de medo, mas ela
tentou manter a calma pela sake do filho.
— Mãe, o que está acontecendo? — Giovanni perguntou, sem
entender a urgência repentina.
— Não há tempo, querido — respondeu Elara, apressando-se
para levá-lo até um alçapão escondido sob o tapete da sala. — Você precisa se
esconder. Agora.
Ela abriu o alçapão com as mãos trêmulas, revelando uma
pequena câmara secreta que eles usavam para guardar mantimentos. Giovanni ainda
estava confuso, mas percebeu a gravidade da situação ao ver o rosto de sua mãe,
tão pálido e aflito.
— Mãe, onde está o papai? — ele perguntou, mas antes que
pudesse receber uma resposta, ela o empurrou para dentro do esconderijo.
— Giovanni, escute com atenção — disse ela, ajoelhando-se ao
lado do alçapão. Seus olhos encontraram os dele, e, por um instante, ela
hesitou, como se quisesse guardar aquele último momento com o filho. — Não
importa o que ouça lá fora, você não deve sair. Fique aqui até eu voltar.
Prometa-me.
— Mas, mãe... — Giovanni começou a protestar, mas a
seriedade no rosto de Elara o silenciou.
— Prometa, Giovanni! — insistiu ela, com a voz tensa, quase
desesperada. — E prometa também que não buscará vingança. Não siga esse
caminho. Por favor.
Confuso e apavorado, Giovanni assentiu.
— Eu prometo — disse ele, sua voz trêmula.
Elara o abraçou rapidamente, beijando sua testa, e fechou o
alçapão com cuidado. Giovanni podia ouvir sua mãe deslizar o tapete de volta
para cima, escondendo o acesso ao esconderijo. A escuridão o envolveu, e ele
ficou completamente imóvel, com o coração acelerado, escutando cada som ao
redor.
Ele ouviu sua mãe caminhar de volta para a entrada da casa,
onde Leandro aguardava. Do lado de fora, os sons de passos pesados e armaduras
metálicas se aproximavam rapidamente. Um frio percorreu o corpo de Giovanni
quando ele ouviu vozes grossas e impiedosas falando do lado de fora, mas não
conseguia distinguir o que diziam.
De repente, o estrondo de uma porta sendo arrombada ecoou
pela casa, seguido pelo som de espadas sendo desembainhadas. Giovanni ouviu seu
pai gritar algo e, em seguida, o som terrível de aço contra aço. Era um
confronto. O medo apertou o peito de Giovanni com uma intensidade que ele nunca
havia sentido antes.
Os sons da luta duraram pouco tempo. Primeiro, o som das
lâminas ecoava com força, até que, de repente, veio um grito alto, o grito de
seu pai. Giovanni sentiu seu sangue gelar. Um silêncio mortal se seguiu, mas
logo foi quebrado pelo som pesado de um corpo caindo ao chão.
Ele sabia, mesmo sem ver, o que havia acontecido.
Ouvindo os passos dos agressores se afastando, Giovanni
permaneceu imóvel, cada músculo de seu corpo tenso, lutando para não sair do
esconderijo. A promessa que fizera à sua mãe ecoava em sua mente, mas a dor e a
raiva cresciam em seu coração.
Ele ouviu então passos leves se aproximando novamente —
desta vez, de sua mãe. Mas antes que pudesse se acalmar, o som de uma risada
sombria preencheu o ar. Giovanni se encolheu ao ouvir o som de algo pesado e
cortante. Logo após, um grito angustiante atravessou a noite — o grito de sua
mãe.
— Giovanni... não saia...! — foi tudo o que ela conseguiu
dizer antes de sua voz ser silenciada de forma abrupta.
Um frio mortal tomou conta do corpo de Giovanni, enquanto
ele compreendia o que havia acabado de acontecer. Ele mordeu os lábios com
força, tentando conter o choro. Lágrimas quentes desciam por seu rosto, mas ele
se lembrou da promessa. Não podia sair. Não podia buscar vingança. A dor de sua
perda estava estampada em seu coração, mas o que podia fazer? Ele era só um
garoto.
O silêncio lá fora durou muito tempo, até que, finalmente,
os sons de passos desaparecendo na distância indicaram que os Cavaleiros das
Sombras haviam partido. Após o assassinato brutal de seus pais, Giovanni
permaneceu escondido no alçapão até que os Cavaleiros das Sombras se afastaram.
Ele não sabia por quanto tempo havia ficado ali, as horas pareciam ter se
arrastado em um silêncio aterrador. Quando finalmente emergiu do esconderijo, o
que encontrou foi uma casa destruída, e a visão insuportável dos corpos de seus
pais. O pequeno vilarejo de Arven logo soube da tragédia, e em meio ao luto
profundo, Giovanni foi acolhido por sua tia, Amara, a irmã de Elara, que chegou
poucos dias depois da tragédia.
Amara, uma mulher forte e de espírito bondoso, havia deixado
a vida na cidade grande para cuidar de Giovanni. Ao vê-lo tão devastado, ela
prometeu a si mesma que o protegeria como se fosse seu próprio filho.
Poucos dias depois de sua chegada, sentou-se com Giovanni na
colina onde seus pais seriam enterrados. O local era calmo, cercado por árvores
antigas, e dali era possível ver toda a casa e as terras onde Giovanni cresceu.
Os moradores de Arven ajudaram a enterrar Leandro e Elara, e ergueram uma
lápide simples, mas significativa, marcada com palavras que ecoavam a coragem e
a bondade de seus pais.
Giovanni, com apenas nove anos, permaneceu em silêncio
durante todo o sepultamento, o coração apertado pelo peso da perda. Quando tudo
terminou, Amara se ajoelhou ao lado dele, colocando uma mão em seu ombro.
— Eu sei que está machucado — disse Amara, a voz suave, mas
firme. — E sei que quer respostas. Mas seus pais... eles não queriam isso para
você. Antes de tudo acontecer, eles me disseram que estavam se escondendo, que
queriam viver uma vida pacífica longe das sombras do passado. E a última coisa
que pediram foi que você não buscasse vingança. Era o desejo deles.
Giovanni levantou os olhos para a tia, lutando para manter a
compostura. — Mas por quê? — ele perguntou, a voz tremendo. — Por que não me
deixaram lutar? Eu poderia... eu poderia fazer algo!
Amara suspirou e puxou Giovanni para um abraço apertado. —
Eles sabiam que o caminho da vingança não traz nada além de mais dor. E eles
queriam que você tivesse uma vida melhor. — Ela se afastou, segurando os ombros
dele e o olhando diretamente nos olhos. — Giovanni, prometeram-me que não
deixariam esse ódio consumir você. Eles escolheram a paz, mesmo quando o perigo
os alcançou.
Ele assentiu lentamente, mas o sentimento de impotência
continuava a borbulhar dentro dele.
Os anos seguintes trouxeram desafios para Giovanni, mas
também trouxeram algum conforto. A comunidade de Arven cuidou dele, oferecendo
a ele não apenas abrigo, mas também apoio emocional. Todos conheciam e
respeitavam seus pais, e havia um carinho coletivo pelo jovem que, agora,
enfrentava a vida sem eles. Sua tia Amara se estabeleceu no vilarejo para
criá-lo, e, com o tempo, Giovanni foi se tornando uma criança responsável,
conhecida por sua maturidade precoce.
Ele aprendeu a trabalhar na terra, ajudando nas colheitas e
cuidando dos animais da pequena fazenda da família. Os vizinhos sempre
comentavam sobre o quanto Giovanni lembrava seu pai, não apenas na aparência,
mas também no caráter forte e determinado.
Mas Giovanni nunca esqueceu o desejo profundo de honrar seus
pais de alguma forma. Ele se dedicou a crescer com responsabilidade, mas, em
seu coração, a promessa que fizera de não buscar vingança pesava cada vez mais,
especialmente à medida que ele amadurecia. Na ausência de seus pais, ele
encontrou conforto em Rosa, a filha do dono da mercearia local. Rosa era doce e
compreensiva, e eles logo se tornaram amigos próximos. Com o passar do tempo,
essa amizade floresceu em algo mais. Giovanni se viu cativado por seu sorriso
caloroso e sua presença gentil. E o sentimento era correspondido.
Enquanto caminhavam pelas margens do rio Innis, o vento leve trazia consigo o murmúrio da água corrente. O sol, tingindo o céu de laranja e dourado, refletia nas águas, criando um cenário tranquilo que contrastava com o peso silencioso que pairava entre Giovanni e Rosa.
Eles passavam horas juntos ali, onde o rio marcava a fronteira entre o continente humano e o misterioso território de Alba Etérea, o continente mágico envolto em neblina. Do vilarejo de Arven, os dois podiam ver apenas os picos brancos das montanhas que espreitavam sobre a neblina densa, uma visão distante e intrigante que sempre parecia prender o olhar de Giovanni. Era inevitável que o nome daquele lugar surgisse em suas conversas, mas para Rosa, Alba Etérea não trazia fascínio, apenas medo.
"Você realmente acha que é uma boa ideia?" Rosa perguntou, sua voz embargada pela preocupação. Seus olhos buscavam o rosto de Giovanni, mas ele estava calado, o olhar fixo nas águas do Innis, onde o rio parecia murmurar algo que apenas ele podia ouvir.
"Você não precisa ir, Gio," ela continuou, tentando esconder a crescente frustração que sentia. "Por que você precisa buscar respostas lá, além da neblina? Alba Etérea... ninguém sabe o que realmente existe lá. E se você se perder? E se... e se não conseguir voltar?"
Giovanni permaneceu em silêncio. Suas mãos se apertaram levemente nos bolsos enquanto ele evitava o olhar de Rosa, temendo que discutir o assunto pudesse acabar em briga. O chamado do rio era forte, e ele sentia que havia algo maior esperando por ele, algo que precisava descobrir. Mas ao mesmo tempo, não queria machucar Rosa. Sabia que ela estava com medo, que a ideia de perdê-lo para um destino desconhecido a atormentava.
"Você nunca fala sobre isso," Rosa disse de repente, o tom de sua voz levemente agudo pela frustração crescente. "Você se cala toda vez que menciono Alba Etérea. Eu sei que algo está te chamando, eu vejo nos seus olhos. Mas você acha que é justo comigo? Eu... eu não quero que você vá, Giovanni. Eu tenho medo do que vai acontecer com você lá."
Ele mordeu os lábios, sentindo o peso das palavras dela. Cada vez que caminhavam pelo Innis, o rio sussurrava segredos, promessas de respostas, mas também presságios de perigos que ele não podia prever. Ele queria tranquilizá-la, dizer que tudo ficaria bem, mas no fundo, Giovanni também tinha medo. E era justamente esse medo que o mantinha em silêncio. Ele sabia que qualquer coisa que dissesse poderia piorar a situação.
Rosa parou de caminhar, ficando de frente para ele. Seus olhos estavam marejados, mas ela mantinha o olhar firme, tentando conter as lágrimas. "Fala alguma coisa, Giovanni. Você não percebe o quanto me machuca quando você fica assim, em silêncio? Eu... eu só quero entender. Eu só quero saber por que você precisa ir. E por que isso é mais importante do que ficar aqui... comigo."
Giovanni respirou fundo, lutando contra o turbilhão de emoções. Parte dele queria prometer a Rosa que nunca partiria, que ficaria em Arven para sempre. Mas outra parte sabia que, se não fosse, sempre sentiria que uma parte de si estava incompleta. Ele finalmente ergueu os olhos para ela, vendo a tristeza e a frustração no rosto de Rosa, e sentiu o aperto no peito.
"Eu... não sei o que dizer," ele começou, hesitante. "Não é que eu queira te machucar, Rosa. Nunca seria minha intenção. Mas eu sinto que tem algo além desse rio, algo que eu preciso descobrir. Algo que... que vai me fazer entender quem eu realmente sou."
"Eu não estou te pedindo para desistir de quem você é," ela retrucou rapidamente, a voz trêmula. "Mas por que você não pode ser quem você é aqui? Por que você precisa ir até Alba Etérea, esse lugar que ninguém conhece, onde até os Cavaleiros das Sombras se escondem? E se for uma armadilha? E se você se perder para sempre?"
O silêncio de Giovanni foi como uma resposta cortante, e Rosa sentiu uma nova onda de frustração tomar conta de si. Ele sempre se fechava quando o assunto chegava a esse ponto, e isso a deixava sem saber o que fazer. Ela sabia que o amava, mas temia que esse amor não fosse o suficiente para impedir que ele seguisse o chamado que apenas ele parecia ouvir.
"Eu não quero te perder, Giovanni," ela sussurrou, agora com as lágrimas rolando pelo rosto. "Eu tenho medo de que, se você for... nunca volte."
Giovanni queria dizer que voltaria, que encontraria um caminho de volta para ela, mas não podia prometer isso. E o peso dessa incerteza o deixava em silêncio, preso entre o amor que sentia por Rosa e o desejo quase incontrolável de responder ao chamado do Innis. Ele olhou para o rio, o sussurro de suas águas parecendo mais alto agora, mais insistente, como se o próprio destino estivesse esperando sua resposta.
"Eu não posso te prometer que vai ser fácil, Rosa," ele finalmente disse, sua voz baixa, quase um sussurro. "Mas eu preciso ir. E eu... eu vou tentar voltar. Por você."
Rosa fechou os olhos, respirando fundo, tentando absorver aquelas palavras. Não era o que queria ouvir, mas sabia, no fundo, que não poderia impedi-lo. "Eu só espero... que você saiba o que está fazendo, Giovanni."
Ele assentiu, o silêncio voltando a se instalar entre eles. Os dois ficaram ali, lado a lado, olhando para o Innis, o rio que dividia o conhecido do desconhecido, a segurança de Arven e os mistérios além da neblina. Ambos sabiam que aquela conversa não resolveria tudo, mas era o começo de algo que nenhum dos dois podia prever.
Naquele momento, Rosa sentiu o peso da escolha de Giovanni, e embora desejasse que ele ficasse, sabia que não poderia detê-lo. E para Giovanni, o chamado do Innis, o rio que parecia cantar seu destino, continuava forte, mesmo que significasse partir e deixar parte de si para trás.
Mas foi durante uma manhã calma, enquanto Giovanni ajudava a
empilhar fardos de feno, que um visitante inesperado apareceu no vilarejo.
Orion, o velho pescador do cais, chegou montado em um
cavalo, trazendo consigo o cheiro da maresia e o peso de muitas histórias não
contadas. Ele desceu lentamente do cavalo e caminhou até Giovanni, observando o
jovem com um olhar atento e penetrante. Giovanni reconheceu Orion de suas
poucas visitas à cidade, mas nunca havia trocado mais do que algumas palavras
com ele.
— Giovanni, filho de Leandro e Elara? — Orion perguntou, a
voz áspera como o vento do mar.
Giovanni se levantou, limpando as mãos na camisa, surpreso
com a aproximação. — Sim, senhor. Sou eu.
Orion se aproximou mais, com um semblante sério. — Soube do
que aconteceu com seus pais... e lamento profundamente. Eles eram grandes
aventureiros, sabe? Viajamos juntos em muitas jornadas.
Os olhos de Giovanni se arregalaram. — Você conheceu meus
pais?
— Conheci. Não como meros aventureiros, mas como amigos —
respondeu Orion, com um leve sorriso que não alcançava os olhos. — Lutei ao
lado de seu pai em mais batalhas do que posso contar. Mas eles queriam uma vida
tranquila, longe dos perigos que os perseguiam. Eles queriam essa vida
tranquila para poderem ter você.
Giovanni, com o coração acelerado, não conseguia esconder a
curiosidade e a dor que aquela conversa despertava. — O que aconteceu com eles?
Por que os Cavaleiros das Sombras os mataram?
Orion suspirou profundamente, os olhos fixos em algum ponto
distante. — Seus pais tinham muitos inimigos, Giovanni. Quando se está no mundo
das aventuras, coleciona-se tanto aliados quanto adversários. Os Cavaleiros das
Sombras... eles não esqueceram as coisas que Leandro e Elara fizeram para
impedir seus planos. Foi uma vingança, pura e simples.
Giovanni cerrou os punhos, sentindo o impulso da raiva, mas
se lembrou da promessa que fizera à mãe. Ele respirou fundo e perguntou: — O
que posso fazer? Não posso... não posso simplesmente esquecer.
Orion observou o jovem por um longo momento. Ele via a dor e
a determinação nos olhos de Giovanni, e aquilo o tocava de uma maneira que ele
não esperava. — Giovanni, seu pai era um guerreiro forte. Mas ele não buscava a
guerra — disse Orion. — Porém, eu posso ver que você não vai desistir
facilmente, não é? Posso treiná-lo. Posso ensinar a você a manejar uma espada,
a lutar e a sobreviver. Mas lembre-se, isso não é para vingança.
Giovanni, com o coração cheio de determinação, assentiu
rapidamente. — Quero ser forte. Quero ser capaz de proteger os outros, como
meus pais fizeram.
Orion balançou a cabeça. — Muito bem. Não espere que seja
fácil. O caminho que você escolheu é árduo, mas vejo que tem a força de seus
pais. Treinarei você, mas é preciso foco. Não permita que o ódio cegue sua
visão.
E assim, Orion começou a treinar Giovanni. As lições eram duras e exigentes.
Giovanni, ainda jovem, insistia em continuar, mesmo quando seus músculos
queimavam de dor. A dor se tornava constante, seus dedos se crispavam de
cansaço, e as gotas de suor escorriam pela testa enquanto a espada, pesada
demais no começo, parecia absorver sua energia. Ele sabia que não poderia
seguir o caminho da vingança que tanto lhe tentava, mas também entendia que ser
indefeso seria uma traição à memória de seus pais. Ele precisava ser forte, não
apenas para si, mas para honrar o sacrifício deles.
Orion, o velho pescador e guerreiro que uma vez lutara ao lado de Leandro e
Elara, observava o garoto com um olhar firme, mas havia algo mais em seus
olhos. Algo que Giovanni só começou a entender ao longo dos anos: uma tristeza
velada, uma história não contada que o fazia ser o mentor que era.
O treinamento começava antes do amanhecer, quando as primeiras luzes do sol
apenas tocavam a linha do horizonte. Giovanni e Orion se encontravam no cais de
Arven, um lugar tranquilo, onde as ondas batiam suavemente contra a madeira.
Lá, começavam suas longas sessões de treino. No início, Giovanni mal conseguia
segurar a espada. A lâmina parecia pesar mais do que ele conseguia suportar, e
cada golpe que desferia era um lembrete de sua fraqueza.
— Levante-se, Giovanni — dizia Orion calmamente sempre que ele caía. —
Lembre-se, a força não está só nos braços, mas na mente. Não é o peso da espada
que te derruba, é o peso dos seus pensamentos.
A cada golpe errado, havia uma correção; a cada queda, uma oportunidade de
aprender. Giovanni passava horas repetindo os mesmos movimentos, ora errando,
ora acertando. E embora o cansaço quase o vencesse, ele nunca desistia.
Orion, embora rígido em sua postura de mentor, não podia negar o esforço que
via no jovem. Ele reconhecia a determinação nos olhos de Giovanni, mas também
via algo mais — um reflexo de si mesmo. Em várias ocasiões, Orion observava o
jovem lutando para controlar as emoções, para não deixar o ódio dominar seus
movimentos. Foi então que, durante uma pausa no treinamento, ele decidiu
compartilhar algo de seu próprio passado.
— Você sabe por que estou aqui, Giovanni? — perguntou Orion em uma tarde
tranquila, enquanto os dois descansavam à sombra de uma árvore à beira do rio.
Giovanni, ainda ofegante do treino, olhou para seu mentor, sem entender a
profundidade da pergunta. — Pensei que fosse porque era amigo dos meus pais —
respondeu, tentando soar respeitoso.
Orion sorriu, mas seu sorriso carregava um peso de tristeza. Ele olhou para
o horizonte, como se estivesse vendo algo muito além do que Giovanni poderia
compreender. — Fui como você um dia — começou ele, sua voz mais suave do que o
normal. — Jovem, determinado... perdido em uma busca que achava ser a única
solução para minha dor. Eu também perdi minha família. E também queria
vingança.
Giovanni ficou em silêncio, absorvendo as palavras. Nunca havia imaginado
que Orion tivesse uma história parecida com a sua.
— Na minha juventude — continuou Orion, sem tirar os olhos do horizonte —,
fui consumido por essa raiva. Pensava que, se eliminasse aqueles que destruíram
tudo o que eu amava, encontraria paz. Mas tudo o que encontrei foi um vazio
maior. A vingança não cura, Giovanni. Ela te corrói por dentro, lentamente. O
ódio nublou meu julgamento tantas vezes que, quando percebi, já não sabia mais
quem eu era.
— O que você fez? — perguntou Giovanni, sua voz baixa, mas curiosa.
Orion suspirou, passando a mão sobre a barba grisalha. — Desisti do caminho
que trilhava. Deixei a espada de lado e voltei ao mar, onde encontrei paz. Não
foi fácil, e, às vezes, ainda me pergunto se fiz as escolhas certas. Mas
aprendi que há coisas que o ódio nunca poderá consertar. É por isso que te
treino, Giovanni. Não quero que trilhe o mesmo caminho que eu. Seus pais
queriam paz para você. E eu vou te ensinar a lutar, sim, mas para que seja
capaz de proteger, não para destruir.
Essas palavras marcaram Giovanni profundamente. Ele sabia que carregava em
si uma raiva quase incontrolável pelo que havia acontecido com seus pais, mas,
a cada lição de Orion, ele começava a entender que o poder não residia na
destruição, mas na proteção. E foi essa mentalidade que o guiou ao longo dos
anos.
— Hoje é o dia — disse Orion, enquanto empunhava sua velha
espada, já desgastada pelos anos de uso. — Se conseguir me desarmar, Giovanni,
estará pronto para o próximo capítulo de sua vida. Mas não se engane. Não será
fácil.
Giovanni, agora com seus vinte e poucos anos, ergueu sua
espada com confiança, mas também com respeito. Sabia que seu mentor não
facilitaria. Ele respirou fundo, fechando os olhos por um momento, lembrando-se
de todos os ensinamentos, das lições sobre paciência e controle. Quando abriu os
olhos, a determinação estava gravada em seu olhar.
A luta começou. Orion atacou primeiro, com movimentos
rápidos e precisos, apesar da idade. Giovanni bloqueou com habilidade, os sons
das espadas colidindo ecoando pelo cais. Era um confronto intenso, mas Giovanni
não estava lutando com raiva — ele estava focado, centrado. Cada golpe que
desferia era medido, preciso.
A batalha durou o que pareceram horas, mas, em um momento
decisivo, Giovanni viu uma abertura. Com um movimento rápido e fluido, ele
girou seu corpo e desferiu um golpe que tirou a espada das mãos de Orion,
arremessando-a no chão.
Orion recuou, surpreso, mas também orgulhoso. Ele respirou
fundo, observando Giovanni, e depois deu um leve sorriso. — Você conseguiu —
disse ele, com um tom de respeito em sua voz. — Está pronto.
Giovanni abaixou sua espada, o alívio e a satisfação
inundando seu peito. Anos de treinamento, esforço e disciplina culminaram
naquele momento. Ele havia superado o mestre.
— Agora — disse Orion, aproximando-se e colocando uma mão no
ombro de Giovanni —, é hora de seguir adiante. Eu sabia que este dia chegaria.
Você não pertence mais a este vilarejo. Seu destino está além do que podemos
ver.
Ele então o guiou até a margem do rio, onde estava atracado
um navio imponente e misterioso chamado Esperança. O navio, de velas negras e
casco de madeira polida, tinha um capitão único: Teach, um innisiano de pele
azulada e olhos profundos como o oceano. Teach era um homem enigmático,
conhecido por navegar pelos rios e mares de Innis, levando seus passageiros
através da densa neblina que envolvia os confins do continente até destinos
desconhecidos.
— Teach o levará além da neblina, até as terras de Alba
Etérea, onde você encontrará o próximo passo de sua jornada — disse Orion.
Giovanni assentiu, sentindo a excitação e a ansiedade
borbulhando em seu estômago. Era o começo de uma nova aventura, uma que ele
sabia que mudaria sua vida para sempre.
Naquela noite, Giovanni fez os preparativos para sua
partida. O vilarejo de Arven estava quieto, como se pressentisse a importância
daquele momento. As pessoas sabiam que Giovanni, o garoto que viram crescer e
se tornar um homem, estava prestes a deixar tudo para trás em busca de um
destino maior. A notícia de sua partida espalhou-se rapidamente, e muitos
vieram se despedir dele. Amigos, vizinhos, todos queriam dizer algumas palavras
de boa sorte, oferecer um abraço ou um aperto de mão.
Contudo, havia uma pessoa em especial que ele esperava ver
antes de partir: Rosa.
Ao longo de sua vida, Rosa sempre estivera ao seu lado,
desde a infância até a juventude. Ela era um lembrete de tudo o que era
simples, calmo e familiar, algo que Giovanni sempre apreciara, mas que sabia
que não poderia manter por muito mais tempo. Seus destinos, embora conectados
pelo afeto, seguiam direções diferentes.
Na manhã seguinte, quando o sol começava a tingir o céu de
laranja e dourado, Giovanni caminhou em direção ao cais. O navio Esperança
estava pronto para zarpar, suas velas negras balançando suavemente com a brisa
matinal. Giovanni estava determinado, mas uma parte de seu coração ainda se
apegava ao vilarejo e, mais especificamente, a Rosa.
Ao chegar ao cais, ele a viu, esperando por ele. Rosa estava
de pé, o vento suave agitando seus cabelos, seu rosto iluminado pela luz do
amanhecer, mas marcado pela tristeza contida. Ela sabia que ele tinha que
partir. Sabia que essa era a escolha que Giovanni precisava fazer. Ainda assim,
isso não tornava a despedida mais fácil.
Giovanni se aproximou lentamente, e o silêncio entre eles
parecia dizer tudo. Finalmente, Rosa falou, sua voz suave e cheia de emoção:
— Então é verdade. — Ela abaixou os olhos por um momento,
antes de encará-lo de novo. — Você vai embora...
Giovanni respirou fundo, tentando manter a firmeza que
sempre cultivara nos últimos anos, mas agora sua voz saiu mais suave, quase
hesitante.
— Vou. Meu caminho está além deste lugar, Rosa. Preciso
seguir em frente.
Ela mordeu o lábio, lutando contra as lágrimas que insistiam
em aparecer. Sabia, desde sempre, que Giovanni não pertencia a Arven. Seu
coração ansiava por algo maior, por aventuras e respostas que ela nunca poderia
oferecer. No entanto, isso não tornava a despedida menos dolorosa.
— Você... — começou ela, com a voz vacilante. — Você vai
voltar?
Giovanni parou. As palavras dela ecoaram em sua mente, e ele
olhou para o rosto dela. Cada lembrança dos momentos que compartilharam passou
por sua mente: os sorrisos, as conversas ao lado do rio, a maneira como ela
sempre parecia entender quem ele realmente era. O afeto que ele sentia por Rosa
estava presente, profundo, mas também sabia que o futuro era incerto. Ele não
podia fazer promessas vazias.
— Eu prometo que vou voltar — disse ele, com uma sinceridade
que fez seu coração apertar. — Não sei quando, nem como, mas voltarei.
Rosa olhou nos olhos dele, e em vez de responder com
palavras, deu um passo à frente. Sem hesitar, ela o beijou suavemente nos
lábios. Foi um beijo breve, mas cheio de emoção, o primeiro que compartilharam.
Aquele beijo carregava todas as palavras não ditas, todos os sentimentos que
Rosa guardara em silêncio por tanto tempo. Quando ela se afastou, havia um leve
sorriso em seu rosto, mas seus olhos brilhavam com tristeza.
Giovanni, surpreso pela intensidade do gesto, ficou sem
palavras por um momento. Ele tocou levemente os próprios lábios, ainda sentindo
o calor do beijo.
— Rosa... — começou ele, mas ela o interrompeu com um
sorriso triste.
— Vá, Giovanni. — A tristeza estava lá, mas também havia
força em suas palavras. — E volte. Eu vou esperar por você.
Giovanni assentiu, sentindo o peso da promessa que havia
feito. Ele queria acreditar que um dia voltaria. Mas agora, seu destino o
chamava. Com o coração apertado, ele se virou e subiu a bordo do Esperança,
onde Teach, o capitão, o aguardava.
O navio Esperança era imponente. Suas velas negras
balançavam como sombras contra o céu, e seu casco, de madeira polida, parecia
resplandecer sob a luz suave do amanhecer. Havia algo misterioso naquele navio,
algo que sugeria que ele havia navegado por mares que poucos tinham coragem de
atravessar. Giovanni, ao colocar os pés no convés, sentiu o peso da viagem que
estava prestes a embarcar. Mas ao mesmo tempo, havia uma sensação de liberdade,
como se aquele navio fosse a chave para um mundo de possibilidades.
Teach, o capitão innisiano de pele azulada, estava no
convés, observando Giovanni com olhos profundos e enigmáticos, tão escuros
quanto o oceano à noite. Seus cabelos caíam em ondas grossas até os ombros, e
seu porte, embora relaxado, exalava autoridade. Havia algo de incomum em Teach.
Sua presença parecia quase etérea, como se ele estivesse mais conectado às
profundezas do oceano do que à superfície. Quando Giovanni subiu a bordo, Teach
o saudou com um leve aceno de cabeça.
— Giovanni de Arven — disse Teach, sua voz grave, mas calma,
reverberando pelo convés. — Você está pronto para o que vem pela frente?
Giovanni, ainda assimilando o que deixara para trás,
endireitou os ombros e respondeu com determinação.
— Estou pronto, capitão. Não sei o que encontrarei além da
neblina, mas sei que preciso seguir esse caminho.
Teach o observou por um momento, como se estivesse medindo
sua coragem, avaliando seu espírito.
— A neblina é apenas o começo, rapaz — disse Teach, enquanto
olhava para o horizonte, onde o rio Innis começava a se fundir com a densa
névoa que parecia engolir tudo. — Alba Etérea está além de qualquer coisa que
você possa imaginar. Mas poucos têm a coragem de cruzar o véu. Muitos que
embarcam nessa jornada nunca retornam.
Giovanni manteve o olhar firme. — Eu não busco retorno
fácil, Teach. Busco respostas. E, se for preciso, enfrentarei o que estiver
além.
O capitão esboçou um pequeno sorriso, satisfeito com a
resposta.
— Então você encontrou o navio certo. — Teach deu um passo à
frente, estendendo a mão para Giovanni. — No Esperança, nós navegamos com
aqueles que têm a coragem de enfrentar o desconhecido. Você está em boas mãos.
Giovanni apertou a mão de Teach, sentindo a firmeza do
capitão. Havia um respeito mútuo ali, uma aceitação silenciosa de que ambos
estavam destinados a essa jornada.
— Prepare-se, Giovanni — disse Teach, virando-se em direção
ao leme. — O rio Innis guarda muitos segredos. E a neblina que estamos prestes
a cruzar pode revelar mais do que apenas o caminho para Alba Etérea. Ela testa
quem você realmente é.
Giovanni olhou para a neblina densa à frente, sentindo uma
mistura de excitação e apreensão. Este era o início de algo novo, algo que ele
mal podia compreender. Enquanto o navio começava a se mover lentamente, ele deu
uma última olhada para o cais, onde Rosa ainda estava, uma pequena figura
distante. Ele sabia que sua vida nunca mais seria a mesma, mas também sabia que
estava exatamente onde deveria estar.
O Esperança navegou suavemente para dentro da neblina espessa que envolvia o rio, desaparecendo no desconhecido. Giovanni, agora com o coração pesado, mas cheio de expectativa, deixou o vilarejo para trás e embarcou rumo a uma jornada que moldaria seu destino.
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