╔══════✾•ೋ° °ೋ•✾══════╗
Princípio de Pororoca
╚══════✾•ೋ° °ೋ•✾══════╝
Participantes: Atina Delphine, Kamaria
O sol já havia rompido o horizonte, e os primeiros raios dourados da manhã banhavam suavemente a casa onde Kamaria vivia. A casa, simples, feita de madeira antiga e com janelas amplas, estava impecavelmente limpa, mas, ao contrário dos dias anteriores, Zaki não estava presente. O cheiro de café recém-coado ainda pairava no ar, e um prato com o restante do ensopado de lebre da noite anterior, levemente esquentado, repousava na mesa. Kamaria, porém, não tinha apetite.
Ela levou a mão ao peito, sentindo a ausência de Zaki como um peso. Seus olhos, entristecidos, percorreram o ambiente vazio. "Ele saiu cedo," pensou. O silêncio da casa a incomodava. Zaki era a presença silenciosa que sempre a acompanhava, e, sem ele, tudo parecia desolado. Kamaria suspirou, e, em um gesto automático, seus pés descalços tocaram o chão frio, guiando-a em direção à tina.
O toque da água fria contra sua pele a fez despertar de suas preocupações, e ela mergulhou, permitindo que o frio penetrasse até seus ossos, limpando qualquer vestígio de sono. O contato com a água era sempre uma fonte de reconexão para ela, como se por um momento pudesse sentir o fluxo do rio Innis dentro de si. Ao terminar, penteou seus dreads brancos com as mãos, sabendo que eles resistiam a qualquer tentativa de dominação, como uma extensão de sua própria essência indomável. Secou-se, vestiu uma roupa recém-recolhida do varal, simples, mas com um toque de elegância que realçava sua figura graciosa.
Kamaria pegou uma maçã da cozinha. Ao dar a primeira mordida, sentiu o gosto doce e ácido explodir em sua boca, e por um breve momento, aquele sabor a trouxe de volta à terra. Em sua outra mão, ela segurava um pandeiro, o instrumento que usaria para sua performance. Ao olhar para as casas de Porto Cantante, dispostas morro abaixo, ela sentiu um leve tremor no corpo. Era um tremor de ansiedade, misturado à apreensão por ter que descer até a cidade sozinha. Não era apenas a cidade que a assustava, mas a necessidade de conseguir dinheiro sem Zaki.
"Não posso evitar," pensou enquanto se dirigia ao tablado à beira d'água, onde muitas vezes artistas se apresentavam.
Atina Delphine, sentada sozinha no tablado, observava o fluxo do rio, perdida em pensamentos. Seu longo cabelo verde, ondulando suavemente ao vento, balançava como as águas do Innis. O peso de suas responsabilidades como futura líder do clã da Lua Cheia começava a se tornar esmagador, e, por mais que tentasse se preparar, havia sempre uma dúvida silenciosa que lhe corroía por dentro. De repente, um movimento a fez erguer os olhos — uma jovem, carregando um pandeiro, se aproximava.
Kamaria adentrou o tablado como se fosse parte dele, cada movimento fluido e controlado. Ela parecia ter sido moldada pelas águas, seus passos quase silenciosos, mas repletos de presença. A roupa que ela vestia — uma túnica simples de linho, tingida de tons escuros — dançava suavemente ao vento, envolvida pelos últimos raios de sol. O pano solto, com seus movimentos precisos, tornava-se uma extensão de sua narrativa, um complemento à performance que ela estava prestes a iniciar.
Atina observou cada gesto com atenção. Kamaria movia-se com uma confiança serena, seu pandeiro brilhando levemente com o reflexo do rio ao fundo. As duas inicianas não trocavam palavras, mas algo entre elas parecia se reconhecer — uma ressonância mágica, talvez, que pulsava no ar.
— Senhoras e senhores! Innisianos e Innisianas! Crianças e filhotes! — Kamaria começou, sua voz clara e firme, ecoando pelo tablado. Ela ergueu o pandeiro, balançando-o como se estivesse chamando o vento e as águas para a cena. — Hoje, vou contar a vocês uma história que o rio nunca revelou, um segredo que o vento não ousou espalhar!
A multidão começou a se formar ao redor do tablado. As pessoas, atraídas pela energia de Kamaria, se aproximavam, jogando moedas aos seus pés como se suas palavras fossem encantamentos que merecessem pagamento imediato. Atina se levantou, intrigada, seus olhos fixos em cada gesto de Kamaria. Havia algo na jovem que a atraía, algo que não conseguia compreender, mas que lhe trazia uma calma inesperada. Ao mesmo tempo, sentia-se em conflito, como se a presença de Kamaria tocasse algo que estava adormecido dentro dela.
Kamaria, com o pandeiro na mão, deu dois passos à frente, fazendo um círculo com o corpo. Seus movimentos eram calculados e graciosos, seus dreads brancos se movendo como serpentes ao vento, acrescentando uma teatralidade extra à sua performance.
— Era uma vez, numa noite tão escura quanto o fundo das águas abissais do Innis, um navio que cruzava o mar de água doce. Shuaa... shuaa... — ela imitou o som das águas batendo no casco, movendo os braços de forma fluida, como se desenhasse o movimento das ondas. — A tripulação a bordo era composta apenas por humanos, navegando para terras que não lhes pertenciam. Terras onde a magia era a regra e onde humanos não tinham lugar.
As pessoas ao redor estavam completamente hipnotizadas, os olhares fixos em Kamaria enquanto ela contava a história. Zaki, que havia chegado discretamente à multidão, assistia à distância, seus olhos nunca deixando Kamaria. Ele sabia exatamente de qual história ela falava — era a história de como ela o havia salvo. Enquanto ela fazia a performance, os olhos de ambos se cruzam. Os olhos azuis profundos de Zaki, tão sinceros quanto um céu limpo de nuvens, marejaram surpresos e emocionados diante da performance e das palavra que Kamaria proferia. Mas antes que ela pudesse contar tudo, ele sentiu o peso da emoção e não conseguiu ficar. Silenciosamente, ele se afastou, desaparecendo pelas vielas.
Kamaria, no entanto, continuava. Sua voz subiu em tom, carregada de emoção, seus gestos amplos desenhando a narrativa no ar:
— O navio seguia, e os humanos a bordo nada sabiam do perigo que se aproximava. Cardumes começaram a cercar o navio, nadando silenciosamente sob as águas escuras. O que aconteceu a seguir foi o começo de uma tempestade, um confronto de mil anos. As águas se tornaram vermelhas, e o navio afundou, tragado pelas profundezas...
Ela fez uma pausa, olhando diretamente para a multidão, antes de continuar, agora em um tom mais sombrio:
— ...Mas antes que o navio desaparecesse, uma jovem innisiana, banhada pela luz da lua, emergiu das águas. Ela não tinha intenção de lutar. Não queria vingança. Em vez disso, viu algo. Algo pequeno. Um menino. Ela o puxou para a superfície e o levou para as margens de Porto Cantante.
Nesse momento, Kamaria se movimentou de maneira mais dramática, levantando o pandeiro acima da cabeça, sua túnica flutuando com o vento. Ela usava a túnica como uma extensão de sua magia narrativa, criando a ilusão de uma presença fantasmagórica. As moedas continuavam a cair, mas a atenção do público estava tão fixada nela que o som metálico passava despercebido.
Quando Kamaria proferiu as últimas palavras da história, um vento gélido percorreu o tablado. Atina, que estivera absorvendo cada palavra, segurou a pérola mágica que trazia consigo, sentindo uma estranha conexão com a magia que se desenrolava à sua frente. De repente, a pérola brilhou intensamente, ressoando com o poder residual de sua mãe, a feiticeira mais poderosa do clã da Lua Cheia.
Kamaria sentiu o ar mudar ao redor delas. A atmosfera ficou pesada, como se as águas do Innis estivessem começando a responder à magia que se agitava dentro de Atina.
— A lua cheia... — murmurou Kamaria, percebendo a mudança no fluxo mágico.
De repente, uma onda de energia explodiu da pérola nas mãos de Atina, iniciando uma tempestade repentina. As águas do porto começaram a agitar-se violentamente, e uma enorme onda, como uma tsunami reversa, formou-se no Innis, avançando em direção ao mar de água doce, crescendo a cada segundo.
A multidão, que até então estava encantada, começou a entrar em pânico. Gritos de espanto e medo ecoaram enquanto as pessoas tentavam correr para longe do tablado. Kamaria, no entanto, permaneceu firme, o vento soprando seus dreads brancos ao redor dela como um halo selvagem. Ela sentiu o poder da tempestade pulsando ao redor, reconhecendo o despertar de algo profundo e ancestral, e olhou para Atina.
— Isso não era esperado... — murmurou Kamaria para si mesma, enquanto a força da tempestade aumentava. As duas estavam conectadas, mesmo sem entender completamente como.
Comentários
Postar um comentário