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Entre correntes e canções
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Enquanto Kamária
ajudava Giovanni a caminhar pela casa, sentia o peso dele não apenas em seu
corpo, mas também em sua mente. Não era apenas em seus braços cansados, mas
também na responsabilidade que agora recaía sobre seus ombros. A cada passo, ela
mantinha o controle firme, sabendo que a cura exigia não apenas habilidade, mas
também paciência. O canto ancestral, que sempre a guiara nas águas, agora era
seu alicerce enquanto ela conduzia Giovanni pelo espaço, cada movimento uma
prova de sua determinação. A sensação do calor febril subindo pelo corpo de
Giovanni, que tremia levemente contra o seu, era um lembrete constante da
urgência de sua condição, e Kamária sabia que o tempo estava se esgotando.
A casa de Kamária era
simples, mas o ambiente místico parecia esculpido na própria essência da noite.
O brilho etéreo da lua filtrava-se pelas janelas estreitas, lançando sombras
ondulantes que se moviam como ecos de um sonho pelas paredes e pelo chão,
conferindo à casa uma aura mágica, quase sagrada. O reflexo lunar acariciava
cada canto, imergindo o ambiente em uma serenidade que parecia suspensa no ar,
como se o tempo tivesse parado, um contraste direto com o caos deixado para
trás em Porto Cantante. A lua, eterna testemunha de suas jornadas, agora os
envolvia em um abraço suave e silencioso, como uma promessa de proteção.
Giovanni,
lutando para se manter consciente, piscava lentamente, os olhos semicerrados. A
sensação de flutuar entre o sono e a vigília o fazia questionar se aquela casa
era real ou apenas um sonho. E então ele a viu. Kamária, envolta pela luz do
luar, parecia algo mais do que humana. Seus movimentos tinham uma graça
sobrenatural, quase como se ela estivesse deslizando pelo espaço ao invés de
caminhar. A pele dela, iluminada pelo reflexo prateado, dava a impressão de que
ela própria era uma estrela viva, pulsante, caminhando entre sombras.
— Kamária... você... — Giovanni
murmurou, a voz embargada, incapaz de completar a frase. Mas a intenção era
clara: ela era uma visão, algo além do que ele poderia entender naquele momento
de vulnerabilidade.
Kamária não
respondeu, apenas ofereceu um leve sorriso, quase imperceptível. Em silêncio,
ela o conduziu até o quarto. O ambiente estava imerso em uma luz suave e
prateada, o luar tocando cada canto com um brilho etéreo. A magia do momento
parecia suspender o tempo, como se o mundo externo não existisse. O único som
era o murmúrio distante do rio Innis, que ecoava suavemente pela casa, como se
a própria natureza guardasse aquele momento para os dois.
Com
cuidado, Kamária ajudou Giovanni a se deitar na cama. Os lençóis brancos
rendados traziam uma sensação de pureza e leveza, como se o espaço fosse uma
extensão do próprio espírito dela. Giovanni afundou nos lençóis, o corpo
cedendo ao cansaço extremo, mas seus olhos não deixavam Kamária. Ela parecia
ser a única âncora que o conectava ao mundo real, um farol de luz no meio da
escuridão em que ele flutuava. Seus músculos estavam tensos de dor, mas sua
atenção estava completamente presa à figura dela, à maneira como a luz
delineava cada curva de seu corpo, transformando-a em algo quase sagrado.
Ele
tentou falar, mas as palavras escaparam antes de poderem ser formadas. Tudo o
que restava era o silêncio, preenchido pela presença dela. Kamária movia-se com
cuidado, seus passos lentos e deliberados, como se o que estivesse prestes a
fazer fosse parte de um ritual sagrado. Mas, no fundo de seu coração, havia uma
dúvida crescente. Enquanto tocava Giovanni, Kamária sentiu a familiar
correnteza das águas internas vacilar por um instante, como se algo além da
cura a estivesse puxando. A innisiana estendeu a mão com firmeza, mas seus dedos
hesitaram por um breve instante sobre o ombro de Giovanni, como se tocassem
algo além da carne ferida. A lembrança de seus antigos ensinamentos reverberou
em sua mente — “não deixe que o poder de seu canto se misture com fraquezas
humanas”. Ela inspirou profundamente, tentando afastar o turbilhão de emoções
que ameaçava sobrepujar sua serenidade. Sua respiração vacilou por um segundo,
e o canto ancestral que sempre fluía de seus lábios ficou mais baixo.
Enquanto
suas mãos se moviam pelo corpo febril de Giovanni, Kamária hesitou por um breve
instante. Seus dedos pararam, quase imperceptivelmente, sobre uma das
cicatrizes, e seus olhos vagaram até o rosto dele. O silêncio entre eles
parecia se estender por um momento a mais, como se a canção que ela entoava se
perdesse na correnteza de seus pensamentos. Com o queixo levemente tenso,
ela retomou o controle de suas mãos, movendo-as suavemente por sobre a pele
dele, tentando dissipar a sensação de que estava quebrando uma barreira que
nunca soubera existir. Seus movimentos eram mais lentos, como se uma parte
dela estivesse dividida, questionando-se em silêncio. Cada gesto parecia ter significado,
demonstrando saber exatamente o peso de cada movimento. Enquanto ela olhava
para Giovanni, seus pensamentos vacilaram por um momento. O que ele significava
para ela? Por que havia arriscado tanto por ele, um humano tão frágil e
vulnerável? Mas as respostas ficariam para depois. Agora, havia uma tarefa
diante dela.
Kamária foi até uma prateleira próxima, onde um
frasco verde translúcido repousava, brilhando suavemente sob a luz da lua. O
óleo de Rosa d'Água. Para os innisianos, aquele óleo era mais do que um simples
remédio — era uma dádiva rara, nascida das das águas calmas e sagradas do
Innis. Ao segurá-lo, Kamária sentiu o peso da tradição e de sua própria
identidade. Era um lembrete silencioso de quem ela era e de sua ligação com as
antigas práticas de seu povo. Usá-lo em Giovanni, um humano, parecia romper
algo dentro dela. Ele estava deitado em sua cama, recebendo um tratamento que
era reservado apenas para os seus, para aqueles que entendiam o verdadeiro
valor da cura através das águas.
O vidro frio em suas mãos trouxe uma
onda de consciência. Enquanto o aroma do óleo preenchia o ar, Kamária fechou os
olhos e deixou escapar um murmúrio suave, quase imperceptível, que se
transformou lentamente em um canto antigo. O som era baixo, delicado, como o
sussurro das águas, mas carregava a força da correnteza. O canto era uma
herança dos Innisianos, uma manifestação de seu poder sobre as águas e a vida.
Ela sabia que o óleo, por si só, não seria suficiente para curá-lo
completamente. A melodia, sagrada e ancestral, traria a verdadeira cura,
conectando Giovanni à força das águas e à essência dela. O perfume suave
preencheu o quarto, espalhando uma sensação de paz e harmonia. O cheiro era
familiar, evocando memórias de águas profundas e silenciosas, onde a Rosa
d'Água florescia em segredo. O simples gesto de abrir o frasco parecia
dissolver as barreiras entre o mundo físico e algo mais místico, como se
estivesse prestes a realizar um ritual sagrado.
Giovanni, com os olhos semiabertos, a
observava em silêncio. A febre ainda o dominava, e sua respiração era pesada e
irregular, mas havia algo na maneira como ele a via. Ele não estava apenas
vendo uma mulher cuidando de suas feridas, estava vendo algo mais. O luar
delineava cada curva de Kamária com uma precisão quase celestial, destacando-a
como se fosse esculpida pela própria noite e transformando-a em uma figura
quase divina. Ela se movia com uma graça sobrenatural, e por um breve momento,
ele se perguntou se ainda estava sonhando.
—
Kamária... você parece... uma estrela... — murmurou ele, as palavras saindo em
um sussurro enfraquecido, mas cheio de admiração.
Ela
sorriu levemente ao ouvir isso, um sorriso discreto, quase imperceptível, mas
que ele conseguiu captar. Kamária não respondeu de imediato. Enquanto caminhava
em sua direção, o frasco de óleo em suas mãos parecia mais pesado do que antes,
como se carregasse o fardo das tradições que ela estava prestes a quebrar. A
voz de seus antepassados, das águas, parecia distante agora, quase inaudível,
sufocada por uma necessidade que ela não conseguia nomear. Cada passo em
direção a ele era um desafio às correntes invisíveis que sempre a haviam
guiado. Havia algo nesse humano, tão vulnerável e frágil, que a fazia querer
protegê-lo, curá-lo.
Kamária começou a desabotoar a camisa
suada e rasgada de Giovanni, cada botão solto revelando um corpo marcado por
cicatrizes e feridas. A luz da lua banhava sua pele exposta, transformando cada
hematoma em algo quase reluzente, como se até mesmo sua dor fosse destacada sob
aquela luz prateada. Giovanni, por mais fraco que estivesse, sentiu a
intimidade do gesto. A forma como ela tocava sua pele, com cuidado, com
atenção, fazia com que a dor que sentia fosse temporariamente esquecida.
—
Eu... nunca... — Giovanni tentou falar, mas sua voz falhou. Ele queria dizer
algo sobre como nunca ninguém o tinha tocado dessa maneira, com tanto cuidado,
com tanta presença. Mas as palavras não vinham.
—
Shhh... — murmurou Kamária suavemente, colocando um dedo delicadamente sobre
seus lábios, silenciando-o. — Apenas descanse. Não precisa dizer nada agora.
Giovanni, por mais debilitado que estivesse, lutava
para manter a consciência. Ele queria entender o que estava acontecendo, queria
fazer parte daquilo. Cada nota do canto de Kamária parecia puxá-lo mais para
dentro da correnteza, e ele sentiu um desejo inesperado de se entregar por
completo. O toque dela não era apenas uma cura física; era um convite para algo
maior. Ele tentou mover a mão para tocar a dela, para sentir a energia que
fluía entre os dois.
Kamária derramou o óleo na palma da
mão, e o líquido viscoso escorreu por entre seus dedos, frio no início, mas
rapidamente aquecido pelo calor de sua pele. O aroma aquático e levemente
floral preencheu o ar, enquanto ela esfregava as mãos, sentindo a textura
suave, quase aveludada, do óleo se espalhando. Ao tocar a pele de Giovanni,
seus dedos deslizaram facilmente, encontrando a aspereza das cicatrizes e a
tensão nos músculos contraídos. A cada movimento, o óleo aquecido penetrava nas
feridas, como um rio se infiltrando em pedras rachadas, suavizando os contornos
rígidos da dor. No momento em que seus dedos finalmente tocaram sua pele,
Giovanni soltou um suspiro profundo. O toque dela, inicialmente leve como o
sopro de uma brisa, logo se intensificou à medida que o calor do óleo se
espalhava pela pele de Giovanni. Ele sentiu os dedos dela percorrendo
lentamente seus ombros e costas, encontrando pontos onde a tensão parecia ter
se enraizado profundamente. A cada pressão, a pele se moldava ao toque dela, os
músculos cederam aos poucos, como rochas sendo desgastadas pelo fluxo contínuo
da água. Giovanni sentia o contraste da suavidade do óleo contra a dureza de
suas cicatrizes, enquanto o calor aliviava a dor, transformando a sensação de
peso em algo mais leve, quase etéreo. Enquanto Kamária massageava o óleo em sua
pele, cada movimento de suas mãos parecia guiado pelo ritmo de sua própria
melodia. Era como se o canto e o toque fossem uma coisa só, e Giovanni sentiu a
música reverberar por seu corpo, ecoando nos pontos onde o óleo penetrava. O
corpo de Kamária movia-se em sintonia com a melodia, fluido e gracioso como uma
correnteza. Para Giovanni, era como ser puxado suavemente para dentro das águas
profundas das quais Kamária parecia emergir.
—
Isso... isso é incrível — murmurou Giovanni sentindo a melodia penetrando sua
mente, como uma corrente suave o guiando para águas mais calmas. Cada nota
parecia se conectar ao toque de Kamária, como se suas mãos e sua voz fossem uma
só correnteza, fluindo através dele. O som o envolvia, embalando seus sentidos,
e por um breve momento ele pensou que a cura vinha tanto da voz dela quanto do
óleo. A melodia não era apenas um consolo; era um poder que o atraía para a
profundidade das águas onde Kamária vivia, onde a força dos Innisianos estava
ancorada.
A melodia suave que escapava dos lábios de Kamária
flutuava pelo ar, e Giovanni podia sentir o ritmo desacelerar por um breve
instante, como se a voz dela estivesse carregada de um peso que não se traduzia
em palavras. Em momentos de silêncio, ele podia ouvir seu próprio coração,
batendo em sincronia com o canto que retornava, mais grave e profundo, como se
ecoasse o turbilhão interno que ela lutava para controlar.
—
Sente isso? — perguntou ela, sua voz baixa, quase um sussurro, enquanto suas
mãos deslizavam pelas cicatrizes dele.
—
Sim... — respondeu Giovanni, a voz cheia de admiração. — Eu... sinto... como se
algo... fluísse...
Kamária
sorriu para si mesma. Ele havia sentido. Era exatamente isso o que estava
fazendo. Seu toque guiava a cura como um rio calmo e poderoso que, aos poucos,
dissolvia a dor e o cansaço de Giovanni. Ele sentia o óleo penetrar em sua
pele, e o calor começava a aliviar as feridas internas. A dor que latejava com
cada batida de seu coração parecia ser lavada, substituída por uma leveza que
ele não sentia há muito tempo.
—
Você está seguro aqui — disse ela, sua voz tranquilizadora. — Deixe que o óleo
faça o seu trabalho... e eu também.
As
palavras de Kamária faziam a mente de Giovanni se movmentar como se estivesse
saindo de uma névoa densa. Sua mente, ainda enevoada pela febre e pelo cansaço,
lutava para compreender o que estava sentindo. Por um lado, ele estava
aliviado, grato por estar sendo curado, mas por outro, havia uma inquietação
crescente. Quem ele era agora? Um homem que dependia de alguém para sobreviver,
algo que ele nunca permitira antes. Kamária, com seu toque e canto, o fazia
sentir mais vivo do que há muito tempo, mas também o expunha de um jeito que
ele não sabia se queria. Ele não estava apenas sendo curado fisicamente. Algo
dentro dele, algo que ele tinha medo de encarar, também estava sendo trazido à
tona — e isso o assustava.
Ele podia sentir cada toque, cada leve pressão de
suas mãos contra os músculos cansados, como se ela estivesse esculpindo uma
nova sensação em sua pele. A textura de seus dedos, por vezes frios, por vezes
quentes, desenhava um mapa de sensações pelo corpo dele — a suavidade, a
fricção, o alívio.Ele sabia que não se tratava apenas do óleo. Era ela. A
maneira como Kamária o tocava, como se estivesse reparando algo além do físico,
algo que ele mal sabia que estava quebrado.
—
Obrigado... Kamária — murmurou ele, sentindo as palavras saírem com
dificuldade, quase como um eco da própria vulnerabilidade que o dominava. Giovanni
fechou os olhos, sentindo o toque dela alcançar partes de si que ele nem sabia
precisarem de cura."
Ela não respondeu de imediato, apenas continuou com
seu toque cuidadoso, deixando o silêncio preenchê-los. Em algum lugar, sob a
luz suave da lua, algo estava se formando entre eles. Algo mais do que físico,
mais do que um simples ato de cura. Giovanni sentia isso, e, mesmo enquanto seu
corpo começava a relaxar, sua mente vagava para a pergunta que ainda pairava:
por que ela estava fazendo isso? O que ele significava para Kamária?
Enquanto Kamária massageava o óleo
sobre as feridas de Giovanni, seus dedos se moviam com a precisão de alguém
acostumada a lidar com o poder das águas. Mas, com cada toque, ela sentia algo
inesperado — uma leveza no controle que normalmente dominava suas ações.
Giovanni, apesar de sua vulnerabilidade física, tinha uma força que
transbordava. Ele se deixava ser cuidado, sim, mas seus olhos, atentos e vivos,
revelavam uma resistência, um desejo de não ser apenas um receptor. Havia algo
na maneira como ele olhava para ela que a desarmava, que a fazia questionar quem
estava realmente no controle ali. Cada toque era carregado de cuidado, mas
também de algo mais profundo, quase imperceptível, como se ela estivesse
guiando não apenas um ritual de cura, mas uma conexão íntima que transcendia a
dor física. Giovanni também podia sentir isso. A dor, antes uma constante em
seu corpo, começava a se dissolver lentamente, substituída por uma sensação de
calor e tranquilidade que parecia vir não apenas do óleo, mas do próprio toque
dela. Ele não conseguia entender completamente o que estava acontecendo, mas
havia algo ali, algo que ultrapassava os limites de um simples tratamento.
—
O que... o que é isso? — Giovanni murmurou, sua voz fraca, mas carregada de
curiosidade e uma leve admiração. Ele mal conseguia articular, mas sentia que o
que estava acontecendo era mais do que físico. Era como se o toque de Kamária
estivesse desfazendo uma barreira dentro dele.
Kamária olhou para ele por um breve momento, sem
parar seus movimentos. Seu olhar era suave, mas profundo, carregando o peso de
algo que ela também parecia não querer nomear. — Óleo curativo — respondeu, a
voz baixa e tranquila, quase como se falasse com o próprio ambiente. Ela não
explicou mais. Sabia que não era apenas o óleo que estava operando aquela
mudança em Giovanni.
O cheiro do óleo era suave, mas
intenso o suficiente para preencher o ar ao redor deles. A fragrância aquática
e floral acalmava seus sentidos, transportando-os para longe do caos de Porto
Cantante.
Conforme a massagem continuava, Giovanni sentiu uma
paz profunda, algo que ele não experimentava há muito tempo. O simples ato de
ser tocado com tanto cuidado fez com que ele se sentisse mais leve, não apenas
fisicamente, mas espiritualmente. Ela estava ali, presente em cada movimento, e
isso lhe trazia uma segurança que ele não sabia que precisava. Era como se,
pela primeira vez, Giovanni não estivesse sozinho na sua dor.
Conforme a melodia de Kamária continuava a
preencher o espaço ao seu redor, Giovanni percebeu algo diferente. A melodia de
Kamária era como o fluxo de um rio — ora suave, ora intensa, sempre presente.
Giovanni sentia-se envolvido por ela, como se as águas invisíveis corressem por
suas veias. Cada nota parecia penetrar mais fundo, atravessando a pele e indo
além, até suas memórias mais escondidas, seus medos mais antigos. O canto dela
não era apenas uma música; era um convite para mergulhar nas águas que ela
controlava, para deixar-se levar pelas correntes da cura e, talvez, da
redenção. Contudo, em meio ao conforto, surgiam perguntas. Ele não conseguia
afastar a sensação de que havia algo mais profundo entre eles. Por que ela
estava fazendo isso? Por que arriscaria tanto por ele, um estranho? O que ele
significava para ela?
—
Por que... você está me ajudando assim? — Giovanni sussurrou, os olhos
fechados, a voz rouca com um toque de vulnerabilidade. — Eu sou só... só um
humano.
Kamária
parou por um instante, as mãos pairando sobre o corpo dele enquanto refletia.
Ela também não tinha todas as respostas. Havia algo em Giovanni que a atraía,
algo que a fazia querer protegê-lo. Zaki passou por sua mente por um momento, e
isso a confundiu ainda mais. Seria ele apenas um reflexo do que Zaki
representava para ela? Ou Giovanni estava começando a significar algo por si
só?
—
Não pense nisso agora — respondeu ela, suavemente, voltando a aplicar o óleo
com movimentos firmes, mas gentis. — Há tempo para perguntas depois. Agora,
você precisa descansar.
Giovanni ficou em silêncio, mas sua mente estava
longe de estar em paz. Ele sentia o toque de Kamária em sua pele, o calor do
óleo e a melodia que parecia envolvê-lo, mas algo em seu interior se retorcia.
A dependência dele por aquela mulher, por sua cura, o deixava inquieto. Não era
apenas sua vulnerabilidade física que o perturbava — era o que ela estava
despertando dentro dele. Como poderia alguém tão forte, tão enraizada em algo
que ele nunca compreenderia, estender-lhe a mão? E por que ele queria tanto
aceitar? Conforme o óleo penetrava mais profundamente em sua pele, trazendo um
alívio quase mágico, ele percebeu que não era só seu corpo que estava sendo
curado. Algo dentro dele, algo que ele não sabia que estava quebrado, também
estava sendo restaurado. Ele não conseguia entender isso completamente, mas
sabia que era importante.
Enquanto suas mãos continuavam a
deslizar pela pele de Giovanni, o canto de Kamária tomou um tom mais grave e
profundo. Cada nota parecia ecoar nas paredes do quarto, refletindo como as
águas refletiam a luz da lua. Giovanni não conseguia entender as palavras, mas
sentia a força delas. Era como se ela estivesse o chamando para uma correnteza
invisível, uma que não exigia resistência. Ele sentiu a voz dela dentro de seu
peito, pulsando junto ao óleo e ao toque. O som trouxe à tona uma paz interior,
quase como se o tempo estivesse parando, e ele soubesse que, de alguma forma,
estava conectado a algo maior. As dúvidas que a rondavam também a deixavam em
um turbilhão emocional. Ela tinha feito a mesma pergunta para si mesma inúmeras
vezes. Por que Giovanni? Ele não era como Zaki, mas em algum lugar, ela sentia
que havia algo maior em jogo. Algo que ela ainda não estava disposta a
enfrentar.
Finalmente, o cansaço começou a pesar sobre Kamária.
Quando terminou de aplicar o óleo, ela limpou as mãos e se sentou ao lado da
cama, observando Giovanni. O rosto dele parecia mais calmo agora, a febre
diminuída e a dor suavizada. Ela suspirou, sentindo a exaustão se apoderar de
seu próprio corpo. A luz da lua ainda banhava o quarto em sua suavidade
prateada, criando um ambiente de serenidade absoluta. Enquanto o cansaço tomava
conta de Kamária, ela lançou um último olhar para Giovanni, adormecido sob o
manto de sua cura. O que ela havia feito por ele ia além de um ato de bondade;
era algo que a conectava a ele de uma forma que ela não estava pronta para
aceitar. Ao fechar os olhos, o canto ancestral dos Innisianos ainda ecoava em
sua mente, e ela sabia que, ao abrir os olhos novamente, as respostas que
buscava não estariam mais tão distantes.
Horas depois, Giovanni abriu os
olhos, lentamente saindo de um estado de semiconsciência, como se tivesse
emergido de águas profundas. O quarto estava silencioso, envolto na penumbra
suave do luar que entrava pelas janelas. Ele piscou algumas vezes, ajustando-se
à luz prateada, e, ao fazê-lo, percebeu algo estranho — a leveza em seu corpo.
A dor que o acompanhara por dias, corroendo cada parte de seus músculos, havia
diminuído. A febre que antes queimava sua pele como fogo agora era apenas um
calor distante, uma brasa quase apagada. Ele respirou fundo, e o ar que entrou
em seus pulmões parecia mais puro, como se algo em seu interior tivesse sido
renovado.
Enquanto seus sentidos gradualmente retornavam,
Giovanni percebeu que a suavidade dos lençóis sob seu corpo era quase irreal,
como se estivesse flutuando. O toque leve do tecido parecia uma metáfora para a
leveza que agora se expandia dentro dele. Cada pequeno movimento trazia alívio,
mas não era apenas o corpo que se libertava da dor; era algo mais profundo. Ele
moveu os dedos, sentindo as articulações responderem com uma facilidade que ele
não experimentava há dias, mas havia uma mudança maior. Por dentro, Giovanni
sentia-se... menos denso, como se um peso invisível que o pressionava há muito
tempo tivesse se dissipado.
A dor física, que antes era uma constante, agora
era uma memória distante, mas o que mais o surpreendia era a sensação de que
algo emocionalmente pesado também havia sido removido. As cicatrizes em sua
pele ainda estavam lá, mas a tensão que havia carregado em seu coração — a
angústia, o medo e a frustração — parecia ter sido suavizada de forma tão
delicada quanto o toque de Kamária. Ele percebeu que, por tanto tempo, havia
sido prisioneiro de suas próprias feridas, físicas e emocionais, e agora algo
novo crescia em seu interior: uma sensação de leveza que ele não sabia que
precisava.
Por um momento, Giovanni quase se sentiu vazio, mas
não de um jeito desconfortável. Era um vazio que trazia espaço — espaço para
algo diferente, algo que ele ainda não compreendia. Ele se perguntou como uma
cura física poderia penetrar tão profundamente, atingindo lugares em sua alma
que ele nem sabia estarem feridos. Não era só a ausência de dor, era como se Kamária
tivesse tocado partes de si que ele havia esquecido, partes que precisavam
respirar novamente.
Quando
ele virou a cabeça para o lado, foi então que a viu. Kamária estava ali, ao seu
lado, adormecida. Seus cabelos, agora um pouco soltos de sua habitual
perfeição, caíam suavemente sobre seu rosto, emoldurando suas feições com
delicadeza. A luz da lua, refletindo em sua pele, dava a ela um brilho etéreo,
quase como se fosse uma entidade das águas, uma visão sagrada. Ela estava tão
serena, tão em paz, que por um momento Giovanni sentiu o tempo parar.
Seu
coração apertou-se. Não era apenas admiração que ele sentia ao olhar para Kamária.
Era algo mais profundo, algo que ele não conseguia nomear, mas que o envolvia
com uma intensidade silenciosa. Ele percebeu, naquele instante, o quão
vulnerável ela parecia, apesar da força que sempre demonstrava. Kamária, que o
havia curado com seu canto e suas mãos, agora descansava ao seu lado, exausta
pelo esforço.
Giovanni
estudou cada detalhe dela — os cílios longos que repousavam sobre suas
bochechas, a forma como seus lábios estavam ligeiramente entreabertos, o
movimento quase imperceptível de sua respiração, que subia e descia de maneira
tão suave quanto as ondas de um rio calmo. Ele sentiu um impulso de tocá-la, de
afastar uma mecha de cabelo que caía sobre seu rosto, mas hesitou. Havia algo
sagrado naquele momento, e ele não queria quebrá-lo.
Ele
fechou os olhos por um instante, sentindo o peso das emoções que cresciam
dentro de si. A mulher ao seu lado era mais do que uma curadora ou uma aliada.
Ela era um enigma, alguém que o atraía de maneiras que ele não compreendia. A
força dela, combinada com a vulnerabilidade que via agora, despertava nele uma
nova compreensão — não apenas de quem ela era, mas de quem ele estava se
tornando ao seu lado.
Ao
reabrir os olhos, Giovanni fixou-se mais uma vez em Kamária. O leve movimento
de sua respiração o hipnotizava. Ela parecia tão distante e, ao mesmo tempo,
tão próxima. Era como se as barreiras que existiam entre seus mundos estivessem
sendo lentamente dissolvidas, assim como o óleo havia se fundido em sua pele. O
que quer que estivesse surgindo entre eles era tão natural quanto a correnteza
de um rio — fluía sem pressa, mas com uma força irresistível.
Giovanni
suspirou, sentindo a quietude da noite envolvê-lo como um manto. Ele sabia que
aquela paz era temporária, que em breve precisariam lidar com o caos de Porto
Cantante e as responsabilidades que o aguardavam. Mas, por agora, havia apenas
o som distante do rio, a luz suave da lua, e Kamária, adormecida ao seu lado.
Giovanni observava
Kamária em silêncio, sentindo-se dividido. Ela parecia tão forte e, ao mesmo
tempo, tão vulnerável. Ele se permitiu fechar os olhos
novamente, um raro sentimento de segurança tomando conta dele e sabia
que, ao lado dela, poderia enfrentar qualquer tempestade, mas temia o que isso
significava — entregar-se a algo que ele não poderia controlar.
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