Funeral Innisiano

 




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A água é o sangue da terra

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Kamaria, ao retornar do banho, encontrou Giovanni já desperto, sentado à beira da cama. A convalescença ainda pesava em seus ombros, e seu olhar parecia turvo, oscilando entre o esforço de focar e a exaustão que teimava em não deixá-lo. A luz fraca da lua filtrava-se pelas janelas, iluminando os delicados bordados nos panos leves que Kamaria vestia. O manto solene a envolvia de maneira quase etérea, fazendo-a parecer uma figura de outro mundo, distante e divina. O intrincado penteado preso em uma rede semelhante a fios de pesca reforçava sua altivez, como se cada detalhe de sua aparência contasse a história de suas raízes Innisianas. Mas, por dentro, Kamaria sentia um peso crescente, algo que não conseguia nomear totalmente, mas que começava a sufocar. A responsabilidade de ser quem todos esperavam a cada passo parecia envolvê-la como as teias invisíveis da rede que prendia seus cabelos.

"Você está pronto para o funeral?" Ela sabia que não podia deixar transparecer a tensão que corria por suas veias. Como filha de Omu e Nia, sua postura deveria ser impenetrável, uma fortaleza. Mas, por dentro, o medo de não corresponder às expectativas a atormentava. A serenidade que projetava contrastava com a insegurança que a corroía.  Seus olhos, profundos como as águas que a conectavam à sua herança, escondiam dúvidas que ela não ousava compartilha e fixaram-se nos de Giovanni, que se sentiu pequeno e frágil diante dela. Mesmo assim, ele sabia que ela o olhava com uma mistura de preocupação e respeito.

Ele tentou se levantar, mas o corpo ainda não estava pronto para responder à sua vontade. As pernas tremeram sob o peso do esforço, e uma súbita fraqueza o fez cambalear. Kamaria, com um movimento rápido e gracioso, o amparou antes que ele pudesse cair. Enquanto segurava Giovanni com firmeza, Kamaria sentiu a água em suas veias reagir à ansiedade crescente, uma leve pulsação sob a pele que a lembrava de que sua conexão com Innis nunca estava distante. Em momentos de tensão, como aquele, as correntes pareciam mais fortes, como se as próprias águas exigissem que ela se entregasse completamente, equilibrando-se entre ser o pilar que ele necessitava e a herdeira espiritual de Innis que todos esperavam.

"Calma," Kamaria sussurrou, sua voz cheia de paciência e cuidado. "Você ainda está fraco, mas eu vou te ajudar. É importante que você esteja pronto, vestido de branco, como a lua e a neblina de Innis. Esse é o nosso modo de honrar os que partiram."

Ela ajustou o peso de Giovanni contra si, os dois corpos se equilibrando em um ritmo sutil de parceria. Ele sabia que precisava de sua ajuda para manter-se de pé, e, naquele momento, entregou-se à confiança que Kamaria transmitia com cada gesto controlado e gracioso. Aquele gesto de ampará-lo, de ser a força que ele necessitava, lhe trazia um pequeno alívio. Aqui, ao menos, ela sabia o que fazer. . Mas à medida que seus dedos firmavam o corpo debilitado de Giovanni, ela não conseguia deixar de pensar que seu papel naquele funeral seria muito mais complexo. Ser a filha de dois líderes respeitados dos Innisianos a fazia sentir como se estivesse prestes a ser engolida por uma maré de expectativas.

"É importante que você esteja vestido de branco, como a lua e a neblina de Innis. É assim que honramos os que partiram." Kamaria falou com uma suavidade que quase fez Giovanni esquecer sua condição debilitada, mas a urgência e a seriedade do momento se mantinham presentes em cada palavra dela.

Ela o conduziu até uma mesa próxima, onde repousava um pequeno frasco esculpido em vidro leitoso, contendo o óleo de roda d'água. O frasco parecia brilhar à luz da lua, como se carregasse em si o reflexo das águas de Innis. "Aqui," disse ela, entregando o frasco a Giovanni com mãos seguras, "passe um pouco deste óleo. Isso nos conectará às águas e à terra. É um gesto sagrado."

Giovanni, embora ainda atordoado pelas tradições que começava a descobrir, acenou com a cabeça, respeitoso. No entanto, ao abrir o frasco, sentiu uma breve hesitação. O perfume úmido e amadeirado do óleo, tão diferente de qualquer coisa que ele já havia experimentado, o envolveu de maneira quase opressiva. Era um cheiro de terra e água, algo primitivo e estranho, como se o próprio rio estivesse se fundindo à sua pele. Por um instante, ele questionou o que estava fazendo ali, participando de um ritual que não lhe pertencia. Mas, olhando para Kamaria, ele percebeu que, apesar do desconforto inicial, queria fazer parte daquele momento, queria entender o que aquilo significava para ela.

Kamaria, já acostumada a esse ritual, começou a passar o óleo sobre si mesma com uma graça quase cerimonial. Seus movimentos eram fluídos e cheios de propósito, como se ela estivesse dançando enquanto o aplicava. Giovanni observou, mesmerizado. Embora fosse humano, ele podia sentir que estava prestes a se integrar a algo muito maior e mais antigo do que sua própria compreensão do mundo. Cada gesto dela parecia carregar um significado oculto, e Giovanni não pôde evitar a sensação de que ele também fazia parte disso agora, mesmo que ainda não soubesse ao certo como.

Assim que terminaram o ritual do óleo, Kamaria ajudou Giovanni a vestir uma túnica branca, tão leve e delicada quanto o tecido da noite. A túnica refletia a luz pálida da lua, destacando a fragilidade de seu corpo enquanto ele ainda lutava contra os resquícios da doença. Ele se apoiou nela, grato por sua força silenciosa. Kamaria o segurou firmemente, guiando seus passos com uma paciência serena, como se cada movimento fosse parte do próprio ritual que eles compartilhariam no funeral.

A caminhada até Porto Cantante seria longa, e Giovanni sabia que não conseguiria chegar sem o apoio de Kamaria. Cada passo sobre as ruas de pedra, porém, reforçava a sensação de estar num mundo completamente alheio ao seu. As figuras ao seu redor, com suas escamas reluzentes, adornos de coral, e a luz suave que alguns deles emanavam, eram como visões de um sonho. Giovanni tentou se concentrar na presença de Kamaria ao seu lado, mas o estranhamento era inevitável; ele nunca havia se sentido tão estrangeiro, tão deslocado. Mesmo assim, ao segurar a mão de Kamaria e perceber o modo como ela o guiava com naturalidade, uma sensação de pertencimento começou a surgir. Ele não precisava entender tudo. Bastava estar ali, ao lado dela, compartilhando o mesmo caminho

Enquanto caminhavam juntos pelas ruas sombrias, Kamaria carregava os elementos essenciais para o funeral: o Mururé, uma vela e a caravela lunar. Cada um desses itens possuía uma aura de sacralidade, um peso espiritual que Giovanni começava a compreender. A cada passo, a sensação de que estava participando de algo muito maior do que ele crescia. Era como se, gradualmente, ele estivesse se tornando parte daquela cultura tão profundamente mística, como se as tradições de Kamaria se entrelaçassem com sua alma de uma maneira que ele nunca havia experimentado antes.

O silêncio noturno envolvia os dois enquanto caminhavam, mas não era um silêncio comum. Giovanni sentia que, embora não houvesse palavras entre eles, havia uma conexão, um entendimento que transcendia as explicações racionais. Cada detalhe parecia carregado de significado, e ele podia sentir, de forma visceral, o poder daquelas tradições.

 



A atmosfera era densa, carregada de uma expectativa silenciosa. As águas de Innis estavam paradas, como se até o rio aguardasse em respeito o que estava por vir. As luzes da cidade permaneceram apagadas, em um luto compartilhado. Aquela noite não era uma noite para celebrações ou agitação. Cidadãos de todas as espécies, humanos, Innisianos e outras criaturas que habitavam Porto Cantante, caminhavam juntos pelas ruas de pedra, seus passos ressoando em um ritmo contido. O luto se manifestava não só em seus rostos, mas em seus corpos, na maneira com que respiravam, como se o peso da tristeza os obrigasse a inspirar mais lentamente.

 

Kamaria e Giovanni estavam entre eles, avançando em silêncio. Cada passo cuidadoso refletia a complexidade de suas emoções. Giovanni, ainda fraco da convalescença, dependia do suporte firme de Kamaria. Sua mão repousava em seu braço, oferecendo estabilidade enquanto ele caminhava com dificuldade. Apesar do cansaço físico, os olhos de Giovanni brilhavam com curiosidade, uma reverência crescente pelo ritual que ele estava prestes a testemunhar. Kamaria, por sua vez, permanecia com uma expressão fechada, embora algo mais profundo parecesse pulsar em seus pensamentos.

 

Eles continuaram caminhando até que Kamaria, sentindo o esforço de Giovanni, parou brevemente, puxando-o mais para perto. Sua voz soou suave, quase como um sussurro, mas carregava o peso de sua ancestralidade.

 

— Este é o rito da passagem dos nossos — ela disse, a voz imersa em respeito. — Um funeral para os que retornam à água... para os que voltam para o abraço de Innis, nossa mãe d'água.

 

Giovanni encarou seus olhos por um momento, tentando captar a profundidade de suas palavras. Ele assentiu, ainda que o cansaço começasse a pesar em seu corpo. Kamaria notou isso e ajustou seu aperto ao redor dele, permitindo que ele se apoiasse mais confortavelmente enquanto seguiam em direção ao rio. Ela sabia que o que estava prestes a acontecer não marcaria apenas o encerramento de uma vida, mas também a reafirmação de sua herança, algo que ela não podia mais ignorar.

 

Os Innisianos ao redor caminhavam ao lado deles, suas formas humanoides adornadas com escamas, corais e cracas. Não havia disfarces, e nenhum deles tentava ocultar sua verdadeira natureza. Alguns iluminavam o caminho naturalmente, emitindo uma luz suave que transformava a caminhada em uma procissão quase etérea. O silêncio entre eles era quebrado apenas pelo som dos pés descalços nas pedras.

 

Quando a procissão alcançou o canal, os Innisianos seguiram calmamente em direção à água, seus passos tão seguros como se o solo continuasse ali, se estendendo dentro do rio. As liteiras que carregavam, adornadas com bastões de coral ricamente entalhados com histórias da deusa Innis, também avançaram para a água, como se fossem parte de uma dança ritualística. Cada liteira, coberta por uma grande folha que se fechava como um casulo, guardava em si algo precioso. Ao tocar a água, essas folhas se abriram com delicadeza, liberando uma fragrância floral que imediatamente tomou o ar ao redor.

 

As folhas revelaram os corpos dos Innisianos e humanos que haviam perecido na tempestade e no ataque ao Esperança. Estavam nus, limpos, despojados de qualquer adorno material. Na morte, como Kamaria havia dito, não se leva nada além de quem realmente somos. A mortalha invisível que dividia o mundo dos vivos do mundo dos mortos parecia fina naquele momento, como se os espíritos dos que partiram estivessem prestes a atravessar para o outro lado, levando apenas suas essências e suas verdades mais profundas.

 

A procissão, em seu silêncio e reverência, avançava com uma solenidade que transcendia o simples ato de dizer adeus. Era um retorno, um reencontro com as águas que os haviam visto nascer e agora os acolhiam novamente.

Kamaria desviou o olhar para Giovanni, e por um momento, seus olhos se encontraram, refletindo a profundidade daquele instante. Ele parecia profundamente tocado pela cerimônia, absorvendo o peso espiritual do que acontecia ao seu redor. Havia algo nos rituais, no silêncio compartilhado, que falava diretamente à alma, uma conexão que transcendia qualquer barreira cultural. Antes que ele pudesse formular uma pergunta, Kamaria se aproximou, sua voz suave, mas carregada de significado:

 

— Para nós, a água é tudo. Na morte, nós voltamos a ela... Assim como a vida flui, a morte também. Não levamos nada além de nós mesmos, de quem realmente somos.

 

Giovanni ouviu com atenção, sentindo o poder e a beleza dessas palavras. Ele assentiu, mergulhado na reverência e no respeito que aquela comunidade demonstrava pelos seus mortos. Mas, ao observar Kamaria mais de perto, ele percebeu algo diferente. Os sussurros ao redor, com o nome dela sendo murmurado, traziam um peso que ele ainda não compreendia por completo. A menção de "filha de Omu e Nia" parecia um título carregado de responsabilidades, algo que ela, claramente, ainda não sabia como lidar.

 

— Está tudo bem? — ele perguntou, sua voz baixa, revelando sua preocupação.

 

Kamaria hesitou, evitando o olhar dele por um instante. — Eu... não sei se estou pronta para ser quem eles querem que eu seja — ela respondeu, com um tom de vulnerabilidade. — Sempre fugi disso, dessa... identidade. Mas agora parece que não posso mais evitar.

Ela lembrava das vezes em que, ainda jovem, se escondia nas margens do rio, longe do olhar atento de seus pais, tentando se convencer de que poderia ser outra pessoa, que poderia viver uma vida que não fosse moldada pelas correntes de sua ancestralidade. Mas agora, de frente para a água, Kamaria sabia que não havia mais para onde fugir.

Giovanni, sem dizer nada, apenas apertou o braço de Kamaria com mais firmeza, o gesto firme, mas delicado. Seus dedos deslizaram suavemente até encontrar a mão dela, segurando-a com uma pressão constante, mas reconfortante. Ele não precisou de palavras para demonstrar sua empatia—era o toque, o calor da mão dele sobre a dela, que dizia tudo. Kamaria parou por um breve instante, sentindo a conexão silenciosa entre eles.

Ela olhou para ele de relance, os olhos encontrando os dele por um momento que pareceu se estender além do tempo. Giovanni mantinha o olhar fixo, mas sereno, sem forçar nenhuma emoção visível. Ainda assim, algo no toque, na firmeza de sua mão, transmitia uma compreensão profunda. Ele não a julgava por suas dúvidas ou inseguranças. Naquele instante, ele estava simplesmente ali, presente, compartilhando o peso do momento com ela.

Kamaria respirou fundo, sentindo uma calma inesperada crescer dentro dela. Com um pequeno movimento, ela entrelaçou seus dedos aos de Giovanni, aceitando silenciosamente o apoio. Não era preciso dizer mais nada. Os dois continuaram caminhando juntos, em perfeita sincronia, como se seus passos refletissem o estado de cumplicidade que só o silêncio podia transmitir.

A cerimônia prosseguia ao redor deles. Os humanos haviam enfeitado as vitórias-régias com Mururés e Rosas d’água, flores com inúmeras pétalas e um perfume único. Kamaria entregou a Giovanni um ramo de Mururé, instruindo-o silenciosamente a colocar a planta em uma das vitórias-régias que flutuavam suavemente sobre a água. Giovanni segurou o ramo com dedos trêmulos. O gesto parecia ao mesmo tempo simples e desconcertante. Como poderia uma planta carregar tanto significado? Ele sentiu o olhar dos Innisianos ao redor, como se todos estivessem avaliando sua participação. Estou fazendo isso certo? — pensou por um breve instante, a insegurança o tomando. Mas, ao se agachar e colocar a planta sobre a superfície da água, ele sentiu um inesperado alívio, como se o rio o aceitasse também. O desconforto não desapareceu completamente, mas se dissipou, substituído por uma sensação de respeito profundo, de estar tocando em algo sagrado.

O Mururé, assim como a Rosa d’água, era uma planta sagrada para os habitantes de Porto Cantante. Elas nasciam nas águas rasas e suas flores desabrochavam à meia-noite, especialmente durante a primavera, como se esperassem pela escuridão para mostrar sua verdadeira beleza. Conchas, pedaços de coral e seixos brilhantes decoravam os corpos que eram conduzidos ao rio. Eram quase três centenas de vitórias-régias, enormes e graciosas, guiadas pelos Innisianos até as águas mais profundas, além dos limites da cidade.

 


Os humanos, por sua vez, seguiam a procissão em silêncio, seus pés descalços em contato com o chão frio. A única luz que iluminava o caminho vinha das velas cuidadosamente colocadas nas folhas flutuantes. Era uma visão etérea, como se a luz não só guiasse os mortos, mas também os vivos, permitindo que todos, unidos pelo luto, seguissem adiante.

 

Enquanto os que permaneciam em terra seguravam conchas nas mãos, o som fino e constante de sua fricção criava uma melodia suave, como o som de uma correnteza fluindo. Esse som molhado e monocórdico envolvia todo o ambiente, enchendo o ar de uma serenidade quase hipnótica, um fluxo que só permitia uma única direção: em frente, para o adeus final.

Peter surgiu entre os presentes com a leveza de um espírito, a concha adornada em suas mãos refletindo a luz fraca do luar. Ele não apenas estava ali para guiar os afogados ao descanso final, mas para conduzir as almas dos vivos em sua própria jornada de luto. Quando ele ergueu a concha aos lábios, o som que emergiu era suave, profundo, e parecia vir das entranhas do rio Innis. Era como se o próprio rio estivesse cantando, um chamado de despedida. Giovanni fechou os olhos por um breve momento, sentindo cada nota ressoar dentro de si, como se o som quebrasse a fina crosta que ele havia construído em torno das suas próprias emoções.




A música parecia entrar em seus pensamentos, como uma corrente que o puxava para longe da margem. Enquanto as notas ecoavam pelo ar, algo dentro de Giovanni se desfez. Ele se lembrou dos próprios pais, enterrados há uma década, e de como o funeral deles havia sido seco, rápido, sem o peso emocional que ele sentia agora. Ele se viu ao lado do túmulo deles, no campo árido, com o sol castigando seu rosto enquanto tentava manter a compostura. As lágrimas que ele havia segurado naquela época, tentando parecer forte diante da morte, começaram a emergir agora, como se o lamento Innisiano tivesse liberado uma barragem dentro dele. Giovanni sentiu as lágrimas molhando seus olhos, não apenas por aqueles que estavam sendo velados naquele momento, mas também por seus pais, por si mesmo e por tudo o que havia enterrado junto com eles.

Kamaria, ao seu lado, o observou com o canto dos olhos enquanto Peter tocava. Ela percebia a tensão nos ombros de Giovanni, as emoções que, embora ainda controladas, estavam à beira de transbordar. Ele apertou sua mão, um gesto silencioso, mas carregado de significado. Ele não era apenas um observador passivo daquele ritual; estava profundamente imerso, sentindo cada aspecto daquele luto coletivo de uma maneira pessoal.

Para Kamaria A música de Peter não era apenas uma melodia; era um chamado que ecoava nas correntes invisíveis que conectavam Kamaria às profundezas de Innis. Ela não precisava invocar o poder das águas; ele estava ali, sussurrando a cada nota, como um lembrete constante de quem ela era. Para ela, as notas da ocarina não eram apenas um som triste e belo, mas uma corrente de energia poderosa. Como feiticeira Innisiana, ela sentia a magia na música, uma conexão profunda com as águas e com o próprio espírito de Innis. Cada nota era uma reverberação das profundezas do rio, e Kamaria, em sua sensibilidade mágica, podia sentir o pulsar das almas que estavam sendo guiadas de volta à água. Ela fechou os olhos, não para reprimir emoções, mas para se conectar ainda mais profundamente com o que estava acontecendo ao redor.

A música de Peter ativava algo ancestral dentro dela, algo que fazia parte de sua essência como filha de Omu e Nia. A cada som, ela sentia as correntes invisíveis de poder que fluíam pelas águas de Innis. Ela podia sentir a presença dos espíritos dos que estavam sendo velados, como se suas energias fossem acolhidas pela música, preparadas para a travessia final. O poder da canção não era só um consolo, era um portal para a transição.

Giovanni, mesmo sem entender completamente, percebeu a diferença. Ele abriu os olhos e olhou para Kamaria. Havia algo em sua postura—mais altiva, mais conectada ao momento—que ele não conseguia definir, mas podia sentir. Ela estava imersa na música de uma forma que ele não estava. Ele a observava em silêncio, sentindo que a experiência dela transcendia a dele. Ela era parte daquilo de uma maneira que ele nunca seria, e isso o tocou profundamente. Havia uma beleza quase divina em como ela respondia à música, como se fosse um ser etéreo, em perfeita harmonia com as águas e as almas.

Kamaria, por sua vez, abriu os olhos lentamente, sentindo o olhar de Giovanni sobre ela. Sem falar, ela estendeu a mão, como se oferecesse a ele uma parte daquela conexão mágica que ela sentia tão naturalmente. Giovanni, sem hesitar, aceitou a mão dela, e naquele toque silencioso, ele sentiu um vislumbre da profundidade que ela experimentava. Era uma sensação fugaz, mas poderosa—como se, por um breve momento, ele também fizesse parte daquele mundo mágico e aquático ao qual Kamaria pertencia de forma tão natural.

A música ecoava como o canto de mamíferos colossais das profundezas, onde apenas os Innisianos podem habitar. Era uma canção molhada, lenta e rítmica, como o bater das ondas no ventre do mundo. O som parecia fluir entre os presentes, levando suas emoções a um estado de lamento. Logo, as vozes das mulheres Innisianas se uniram, suas melodias ecoando com uma força que parecia surgir das profundezas do próprio rio. O lamento, ao mesmo tempo suave e carregado de dor, envolvia o ar, penetrando os ouvidos e o coração de Giovanni. Ele nunca havia ouvido algo tão intenso, tão visceral. O som, molhado e rítmico, parecia carregar não apenas a tristeza da perda, mas também a aceitação do ciclo da vida, algo que Giovanni nunca havia experimentado em um funeral humano. Enquanto as notas altas se misturavam ao som das águas, ele percebeu que estava ouvindo mais do que uma canção de despedida. Era uma convocação à alma, um chamado para que ele também participasse desse ciclo eterno. Giovanni fechou os olhos por um momento, permitindo que o lamento o inundasse, sentindo como se cada nota fosse uma onda batendo contra a rocha que ele sempre fora—até agora.

"Jẹ ki ikarahun naa daabobo ọ
Lori irin ajo tuntun yii
bayi o jẹ omi
bayi o jẹ omi..."

A melodia parecia tocar a própria essência das águas, trazendo à tona um profundo sentimento de comunhão. Kamaria assistia a tudo com o coração apertado, observando Peter enquanto ele guiava os rituais. Havia algo na reverência dele que a comovia profundamente.

Os sons das notas graves de Peter começaram a se misturar ao lamento das mulheres Innisianas, criando uma harmonia densa, quase sufocante. Giovanni abriu os olhos, olhando para o rio, onde as vitórias-régias flutuavam, adornadas com os corpos que retornariam à água. Ele observava enquanto Kamaria entregava o mururé para ele, e com gestos lentos, juntos, colocaram a planta sobre uma das vitórias-régias. O gesto o tocou de uma forma que ele não esperava, como se estivesse prestando uma última homenagem não apenas aos mortos do Esperança, mas também aos seus pais, enterrados a milhares de milhas dali.

Ao lado de Kamaria, Giovanni se inclinou ligeiramente para tocar a água, como se quisesse sentir a conexão que ela sempre falava. Ele já não era mais apenas um forasteiro assistindo ao ritual de outra cultura. Ele fazia parte daquele momento. A água estava fria, e o toque fez algo em seu interior despertar—como se houvesse um fluxo contínuo entre ele, as águas e a cerimônia. O som constante das conchas sendo atritadas pelos humanos nas margens ecoava, e Giovanni, por um momento, sentiu que estava no mesmo fluxo que aqueles que partiram. Ele se lembrou de sua mãe, de como ela lhe ensinara a importância do ciclo da vida e da morte. As palavras que ela sussurrava em seu leito de morte, sobre a alma se juntar às estrelas, agora faziam sentido para ele, mas no contexto das águas.

Enquanto eles caminhavam, Peter continuava a guiar o ritual com sua melodia profunda, e os Innisianos começaram a sacar seus punhais. Giovanni observou com um misto de reverência e curiosidade enquanto as mãos escamosas cortavam suas próprias palmas, deixando que o sangue venenoso caísse sobre as caravelas lunares. Ele olhou para Kamaria, esperando algum tipo de explicação, mas ela estava absorta no momento, seus olhos brilhando à luz das caravelas, conectada ao ritual de uma forma que Giovanni não conseguia ainda compreender plenamente.

A luz azulada das caravelas iluminou as águas, e ele sentiu um nó se formar em sua garganta. Giovanni havia se preparado para um luto distante, como observador, mas a profundidade do ritual o envolveu de tal forma que era impossível manter essa distância. Ele sentiu o peso da vida, da morte e do ciclo ininterrupto que conectava todos ali, vivos e mortos.

Kamaria virou-se para ele, como se sentisse sua inquietação. Ela aproximou o rosto do dele, os olhos refletindo a luz azul das caravelas e sussurrou, como se fosse um segredo entre eles: — Para nós, a água é tudo. Na morte, voltamos a ela... Assim como a vida flui, a morte também. Não levamos nada além de nós mesmos, de quem realmente somos.

Essas palavras ecoaram nos pensamentos de Giovanni, como se elas completassem algo que ele sabia instintivamente, mas nunca havia sido capaz de colocar em palavras. Ele assentiu, apertando os lábios para controlar a emoção. Lembrou-se de como os funerais humanos eram, secos, formais, sem a mesma conexão profunda que agora parecia ser o cerne daquela cerimônia Innisiana. Ele não pôde evitar se perguntar o que teria sido diferente se tivesse dito adeus aos seus pais dessa maneira, em comunhão com os elementos, ao invés do isolamento que sentiu naquele dia.

Ele olhou para Kamaria novamente, sentindo algo mudar entre eles. Mas antes que pudesse processar completamente o que estava acontecendo dentro de si, ele percebeu uma agitação na expressão dela. Giovanni seguiu o olhar de Kamaria e viu a figura de Zaki à distância, observando-os com um olhar que, mesmo àquela distância, parecia carregado de algo mais profundo. Giovanni sentiu um leve aperto no peito, uma sensação inesperada de desconforto que ele não conseguia nomear completamente. O peso daquela presença começou a pairar sobre ele, como se a atenção de Zaki estivesse não apenas sobre Kamaria, mas sobre eles dois, juntos.

Ele desviou o olhar por um instante, lutando para manter o foco no que estava acontecendo ao redor, mas a percepção de ser observado persistia. O som contínuo das conchas nas mãos dos humanos e o lamento das mulheres Innisianas parecia ficar mais distante, abafado por essa nova tensão invisível. Giovanni apertou o braço de Kamaria com mais firmeza, sentindo a necessidade de reafirmar sua presença ao lado dela, não apenas para ela, mas para ele mesmo.

O gesto foi instintivo, sutil, mas Kamaria pareceu perceber, e, por um breve momento, seu corpo relaxou contra o dele. O toque deles se manteve, uma âncora em meio às emoções conflitantes que flutuavam ao redor, e Giovanni se deu conta de que, mesmo sem entender completamente, algo estava sendo decidido ali, silenciosamente, entre ele, Kamaria, e Zaki.


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