╔══════✾•ೋ° °ೋ•✾══════╗
“Quando houve a voz, houve o canto. E quando houve o canto, houve a magia”.
╚══════✾•ೋ° °ೋ•✾══════╝
Kamaria sempre ouvira aquelas palavras quando era pequena. Era um ditado innisiano, carregado de sabedoria antiga, mas seu verdadeiro significado só foi revelado para ela quando o momento certo chegou: o momento de cantar. Entre os sereianos, o canto não era uma ferramenta de sedução, como muitos humanos imaginavam. Era um vínculo profundo com a magia das águas, uma linguagem antiga que se entrelaçava com as correntes e os fluxos do mundo natural. E foi durante suas primeiras notas que ela percebeu o brilho nos olhos de seu pai, Omu, uma intensidade tão profunda quanto as regiões abissais da fenda proibida.
"Você sente o poder da voz, filha?" Omu perguntava sempre ao fim de cada lição, enquanto as águas ao redor deles pareciam vibrar em harmonia com as palavras. "Cada melodia tem um propósito, uma correnteza invisível que nos conecta ao mundo."
O poder do canto sempre foi central na vida de Kamaria. Omu, um homem de sabedoria inabalável e guardião das antigas tradições sereianas, acreditava que a voz não era apenas um meio de expressão, mas uma extensão da alma, uma ligação inquebrável entre os seres aquáticos e os segredos do mar. Para ele, o canto era uma ferramenta sagrada, algo que trazia equilíbrio e, quando necessário, podia se transformar em uma arma poderosa.
Ela se lembrava de como a voz dela começava a ressoar nas águas desde muito jovem, quando ele a ensinava a ouvir as correntes, a entender os murmúrios das profundezas e a canalizar o poder do canto para se conectar à essência do Innis. A cada nota que soltava, sentia a força pulsar de dentro de si, mas com ela, vinha também o peso de uma responsabilidade que, com o tempo, se tornaria uma carga. E não apenas uma responsabilidade mágica, mas também familiar.
Omu não via o canto apenas como algo espiritual. Para ele, era uma maneira de manter a honra da família, de se destacar dentro do clã e reafirmar o papel central que desempenhavam entre os sereianos. Ele sempre a lembrava da importância de honrar seu legado, da necessidade de não apenas compreender, mas viver o que a voz representava. "Nossa família tem um nome a zelar," ele dizia com frequência, a voz grave ecoando nas águas ao redor, enquanto a guiava por mais uma lição. "E a sua voz, Kamaria, é parte desse legado. Nunca esqueça isso."
Mas a pressão não vinha apenas de Omu. Nia, sua mãe, era uma guerreira implacável, tão feroz nas águas quanto nas batalhas contra os humanos. Para ela, a honra da família não era apenas uma questão de tradição; era algo que se conquistava através do sangue, da força, e da manutenção do poder sobre os outros. "Você precisa honrar nossa família," Nia repetia incessantemente. "Através do sangue e do sacrifício, mantemos nosso poder."
Essas palavras pesavam sobre Kamaria como correntes invisíveis. Embora ela compreendesse a importância do clã para sua mãe e seu pai, havia algo nela que resistia à ideia de que a violência e os saques eram o único caminho para garantir a segurança e a prosperidade de seu povo. Ao contrário de Nia, que acreditava que a única maneira de garantir a sobrevivência do clã era através de confrontos constantes com os humanos, Kamaria via a lua refletida nas águas e sentia algo diferente, algo mais profundo.
Era nas noites em que o clã preparava seus ataques que Kamaria se afastava, nadando para longe do caos e do cheiro metálico de sangue, buscando refúgio no silêncio das águas iluminadas pela lua. O movimento suave das ondas parecia acalmá-la, a escuridão abraçava seu corpo, sua pele negra reluzindo sob a luz prateada, e ali, sozinha, ela começava a cantar.
Enquanto nadava, as notas suaves de sua canção se misturavam ao som da água, uma melodia tranquila que parecia ecoar nas profundezas do Innis. A voz de Kamaria flutuava pelas ondas como uma corrente sutil, envolvendo-a em um manto de paz que a fazia esquecer, por um breve momento, das obrigações que carregava.
Cada vez que cantava, sentia-se livre. Livre da pressão de Omu, livre da sede de poder de Nia, livre das expectativas de seu clã. As águas respondiam a sua voz, e o poder da magia se movia ao seu redor, não como uma força controladora, mas como uma extensão natural de quem ela era.
"Eu canto, mas não para matar... Canto para viver," murmurava para si mesma, deixando que sua voz se misturasse com as correntes suaves que acariciavam sua pele. A melodia que ela criava não era para guerra, mas para a vida, para os segredos da lua e das profundezas, que apenas as águas podiam entender.
Porém, havia algo que Kamaria odiava mais do que os saques: o fato de que, mesmo com seu canto poderoso e sua conexão com as águas, ela era constantemente arrastada de volta para a realidade cruel de sua família e suas tradições. Cada vez que um ataque acontecia, Kamaria se afastava mais de quem realmente era, e a voz que deveria ser uma expressão de liberdade se tornava, em seu coração, um grito abafado de frustração.
Enquanto continuava a nadar, sua voz flutuando pelo ar noturno, ela sentiu uma tristeza profunda. A lua acima parecia observá-la, testemunhando sua luta interna. "Eu não sou como eles," pensava, cada nota carregando a dor de sua alma dividida. "Não posso ser como eles." E ainda assim, sabia que, por mais que tentasse se afastar, por mais que suas canções falassem de paz, a sombra das expectativas de sua família sempre pairaria sobre ela, tentando arrastá-la de volta.
Porém, naquela noite, enquanto cantava e nadava, Kamaria permitiu-se um raro sorriso. Havia algo libertador na incerteza, algo que a fazia sentir que, mesmo que não soubesse para onde seu caminho a levaria, já era um alívio saber que podia, ao menos, escolher não seguir pelo caminho que sua família tentava forçá-la a trilhar. A incerteza do que viria a seguir era assustadora, sim, mas a certeza do que ela não queria ser era um fardo ainda maior. E naquele momento, envolvida pelas águas e pela luz da lua, Kamaria sorriu com a certeza de que, seja qual fosse o futuro, ela não estaria sozinha — as águas sempre a guiariam.
Ela fechou os olhos e continuou a cantar, sua voz agora mais forte, mais confiante, deixando que a correnteza invisível do Innis a levasse, sabendo que, ao contrário do que Omu e Nia acreditavam, a verdadeira honra vinha não da violência ou do poder, mas da coragem de seguir sua própria canção.
Foi em uma dessas noites, durante mais um saque, que a vida de Kamaria tomou um rumo que ela jamais poderia prever. O céu estava escuro, sem estrelas, e o único brilho que iluminava as águas do rio Innis vinha da lua alta. O som suave das ondas batendo contra o casco de um navio humano ecoava na distância, misturando-se com o sussurro da brisa. Mas o ar calmo da noite estava prestes a ser cortado pelo caos que os innisianos traziam consigo.
Antes de qualquer ataque, havia o canto.
O clã da lua crescente estava reunido nas águas escuras, cercando silenciosamente o navio humano que seguia seu curso tranquilo, alheio ao destino que se aproximava. Os innisianos sempre cantavam antes de um ataque. Era um ritual antigo, que seus pais — tanto Omu quanto Nia — diziam ser uma tradição para invocar a força das águas e abençoar o saque. Para eles, o canto não era apenas um prelúdio, mas um aviso, uma forma de unir o grupo e invocar a magia que os fortalecia.
O som começou baixo, um murmúrio que se erguia das profundezas, como se as próprias águas sussurrassem junto. Os innisianos, escondidos sob a superfície, deixavam que suas vozes se entrelaçassem em harmonia, criando uma melodia hipnótica que reverberava nas ondas. Kamaria, ainda à margem do grupo, podia sentir a força daquela música ancestral. Era um cântico de poder e de morte, uma canção que arrepiava a espinha e fazia o sangue pulsar mais rápido.
Ela, no entanto, não cantava.
A voz de Kamaria, que tantas vezes se conectara às águas para acalmá-las e guiá-las, permanecia em silêncio. Ela observava enquanto os outros, com olhos brilhantes e corações fervorosos, se preparavam para o ataque. Nia, sua mãe, estava à frente, liderando o grupo com uma determinação que Kamaria reconhecia bem. Omu, seu pai, estava ao lado dela, a voz grave e poderosa de ambos destacando-se no coro.
Kamaria sempre se manteve à parte dessas ações. Embora não pudesse impedir o que estava para acontecer, sua alma resistia a participar. A violência não lhe trazia a sensação de honra que seus pais tanto exaltavam. Em vez disso, cada saque a deixava com um peso no peito, um desconforto que crescia cada vez mais.
Os humanos no navio não sabiam o que estava por vir. Ainda em suas rotinas noturnas, alguns riam, outros conversavam em tons baixos, enquanto o navio cortava as águas suavemente. A canção dos innisianos, invisível para eles, se intensificava, envolvendo o navio em uma espécie de encantamento sombrio.
E então, com o último acorde do cântico, os innisianos atacaram.
O caos explodiu em segundos. Como sombras emergindo da noite, eles saltaram da água, agarrando-se ao casco do navio com uma força que parecia desproporcional à sua figura. Espadas reluziam sob a luz da lua enquanto os guerreiros innisianos escalavam as laterais do navio com destreza, seus corpos molhados brilhando sob a luz prateada. Os gritos dos humanos encheram o ar assim que perceberam o que estava acontecendo, mas já era tarde demais.
O som de espadas colidindo ressoava no convés, acompanhado pelos gritos de dor e o estalar de madeira sendo quebrada. Os humanos tentaram se defender, mas os innisianos, impulsionados pela força mágica das águas e pela agressividade incansável, estavam em vantagem. O cheiro de sal e sangue começou a encher o ar, misturando-se com o ranger do navio sob o peso da batalha.
Kamaria, flutuando à distância, observava a cena com um nó apertado no estômago. Ela viu Nia liderando os guerreiros, sua mãe era implacável, cortando inimigos com uma precisão letal. Seus olhos brilhavam com uma fúria que Kamaria nunca compartilhara. Omu estava logo atrás, sua voz ainda entoando o cântico, amplificando o poder dos innisianos enquanto eles avançavam implacáveis sobre os humanos.
Mas Kamaria não se movia. Ela não tinha coragem de se juntar ao ataque, mas também não tinha força para impedir. Estava paralisada entre dois mundos — aquele que sua família representava e o mundo pacífico que ela desejava encontrar. Sua mente estava tomada por uma confusão de sentimentos, e enquanto a luta se desenrolava ao redor, ela se deixava levar pelo movimento das águas, tentando ignorar os sons da violência e do derramamento de sangue.
Foi então que algo quebrou sua distração.
Um som diferente dos outros, algo mais suave, mas igualmente perturbador. Ela ouviu algo caindo na água. Seus olhos se estreitaram, procurando a origem do som, até que, entre as sombras e o caos, ela viu.
Um corpo pequeno, afundando rapidamente.
Kamaria prendeu a respiração por um instante, o coração acelerado. Era uma criança. Tão pequena e frágil, seu corpo já começava a ser engolido pelas águas escuras do Innis. O instinto de deixá-lo se afogar surgiu brevemente — afinal, era o que Nia faria, o que seu clã faria. Mas algo a impediu. O tamanho do corpo, a vulnerabilidade do pequeno ser, tudo isso a fez hesitar.
Sem pensar, Kamaria mergulhou.
Seus movimentos eram rápidos e precisos, como se a água a conhecesse e a guiasse até o corpo. A luta e o caos acima dela desapareceram momentaneamente, e tudo o que restava era o som abafado da correnteza e o bater rápido de seu coração. A criança afundava mais e mais, o corpo inerte sendo levado pela gravidade das águas.
Kamaria nadou com toda a força que tinha, cada braçada a levava mais perto do pequeno corpo. Quando finalmente o alcançou, seu coração quase parou. A pele pálida da criança contrastava com a escuridão ao redor, os cabelos finos flutuando como algas. A fragilidade daquele pequeno ser a atingiu com força.
Ela segurou a criança com firmeza, puxando-o para perto. Sem hesitar, Kamaria impulsionou seu corpo para a superfície, movendo-se rapidamente contra a pressão das águas, enquanto sentia a falta de ar começar a queimar em seus pulmões. Quando finalmente emergiu, o som do caos voltou a envolvê-la, mas agora tudo parecia distante.
O corpo da criança flutuava em seus braços, os pequenos pulmões sem movimento, e Kamaria olhou para o rosto sereno e quase vazio. O desconforto que sentiu ao ver a criança ali, inerte, cresceu dentro dela, até que não pôde ignorá-lo. O que deveria fazer? A resposta parecia óbvia, mas seu coração resistia.
Ela olhou para o navio, onde a batalha ainda rugia, e depois para a criança em seus braços. O brilho suave da lua refletia nas águas ao seu redor, intensificando-se conforme seu poder mágico começava a pulsar. A decisão estava tomada.
Kamaria pressionou a mão contra o peito da criança, sentindo o frio gélido de sua pele sob a luz da lua. O menino parecia tão frágil em seus braços, uma vida quase apagada, e a escuridão ao redor só amplificava a urgência da situação. O brilho suave da meia-lua em sua testa, marca de sua linhagem e de seu poder, começou a intensificar-se, pulsando em resposta à presença da água e ao silêncio que envolvia ambos. A magia estava lá, ao alcance de sua voz, aguardando seu comando.
Ela fechou os olhos por um momento, buscando a conexão que sempre sentiu com o fluxo das águas ao seu redor. Desde pequena, seu pai Omu lhe ensinara que o canto não era apenas uma ferramenta de comunicação ou um artifício sedutor, mas uma verdadeira invocação do poder ancestral que os sereianos possuíam. Cada nota carregava o peso das marés, e cada melodia tinha a capacidade de moldar o próprio curso da natureza.
As águas ao redor de Kamaria pareciam vibrar com sua presença, como se cada gota reconhecesse sua essência. O fluxo suave do rio começou a responder ao seu chamado silencioso, e ela abriu os olhos, que agora brilhavam em um tom prateado, refletindo a luz da lua acima. Era como se todo o universo aquático estivesse esperando por seu canto.
Ela respirou fundo, e então, suavemente, começou a cantar.
A melodia que saía de seus lábios era baixa e quase inaudível, um sussurro flutuante que se misturava ao som da correnteza. Não era uma canção de batalha como aquelas entoadas pelos guerreiros do seu clã, mas uma melodia de cura, carregada de compaixão e poder. Cada nota parecia ondular pela água, espalhando-se como círculos concêntricos em um lago calmo. O ritmo de sua voz acompanhava o movimento das ondas, e logo, pequenos redemoinhos começaram a se formar ao redor deles, dançando ao compasso de seu canto.
A magia era antiga, e Kamaria sentia cada pulsar de energia se fundir à sua própria essência. Seus dedos, ainda pressionados contra o peito da criança, começaram a traçar um círculo na pele molhada, a mesma forma que a água agora espelhava ao redor. Sua voz, mais forte agora, controlava o fluxo de vida dentro e fora do corpo do menino. Era como se sua melodia fosse o guia para a água, comandando-a a entrar e sair dos pulmões da criança com a mesma suavidade com que as ondas beijavam a costa.
Enquanto continuava a cantar, Kamaria sentiu o círculo mágico se formar ao redor de ambos, como um véu protetor que os envolvia nas águas escuras. A luz da lua, intensificada por sua canção e pelo símbolo em sua testa, refletia em cada curva daquele círculo etéreo, criando um brilho tênue que iluminava o rio. O menino estava imerso em sua voz, e Kamaria podia sentir o fluxo de sua vida vacilante começar a responder.
Seu canto parecia se misturar com o fluxo do rio, tornando-se uma só entidade. A água ao redor deles começou a dançar em sincronia com sua voz, e Kamaria percebeu que, naquele momento, sua magia e a força da natureza estavam completamente conectadas. Era um vínculo invisível, mas poderoso. Cada nota que ela entoava trazia consigo a antiga sabedoria de seus ancestrais, e cada pausa na melodia era preenchida pelo movimento suave da água, que fluía com graça através do corpo do menino, limpando seus pulmões do afogamento.
A sereiana finalmente moveu a mão de forma mais deliberada sobre o peito da criança, os dedos seguindo o ritmo da água dentro dele, como se desenhasse o caminho da vida que voltava aos poucos. Com cada gesto, ela guiava a água para fora dos pulmões do menino, sentindo a resistência natural do corpo ceder à sua magia. A água, antes um inimigo, agora era sua aliada, fluindo gentilmente ao comando de sua canção.
A canção de Kamaria atingiu seu clímax, e com um último acorde suave, ela sussurrou as palavras finais do encantamento: "Aqua Nexum."
O círculo mágico ao redor deles brilhou por um instante mais forte, antes de lentamente se dissipar na superfície do rio, como se tivesse cumprido seu propósito. A lua, testemunha silenciosa da magia, refletia-se nas águas tranquilas enquanto a energia ao redor deles se acalmava.
Então, a pressão diminuiu. A criança, finalmente, tossiu. O som rouco de sua respiração, lutando para retornar ao normal, trouxe um alívio imediato a Kamaria. Ele tossiu mais algumas vezes, seus pulmões frágeis se enchendo de ar novamente, e seus pequenos olhos se abriram brevemente, confusos e cansados, antes de fecharem mais uma vez, exaustos.
Kamaria, ainda recuperando o fôlego, observou-o em silêncio. Ela sabia que aquele momento havia mudado algo dentro dela. Sua magia, sua voz, havia trazido a criança de volta à vida. E enquanto o menino repousava em seus braços, Kamaria sentiu o peso do mundo se aliviar de suas costas por um breve instante. Ela sorriu, não por vitória, mas porque a escolha que fizera — de salvar a vida de alguém indefeso — a libertara, mesmo que por um momento, da sombra de sua família e de seu destino.
Kamaria o segurou por mais alguns momentos, observando o corpo frágil e o peito subindo e descendo lentamente. "O que eu estou fazendo?" sussurrou para si mesma, olhando para a imensidão azul ao seu redor. Seria mais fácil deixá-lo, deixar que o destino seguisse seu curso. Mas ao mesmo tempo, algo dentro dela não conseguia abandoná-lo.
Enquanto o navio humano afundava no horizonte, Kamaria nadou para a margem, carregando o menino com cuidado. Ele era leve demais, como se sua vida pesasse pouco em seus braços. Quando chegaram à terra firme, ela o deitou suavemente no chão, observando o frágil corpo imóvel à sua frente.
Kamaria olhou ao redor. A margem do rio, coberta por uma vegetação rala e algumas pedras lisas, estava mergulhada na penumbra da noite. O cheiro da água doce misturava-se com a brisa úmida que soprava da direção de Porto Cantante. Ao longe, ela podia ver as luzes das pequenas construções de madeira e pedra, um porto conhecido pelos innisianos por ser acolhedor aos humanos e território do clã da lua crescente.
No entanto, Kamaria sabia que aquele menino estava longe de estar seguro ali. Quem o encontraria? Quem o protegeria? E se o encontrassem? Humanos eram criaturas imprevisíveis, capazes de tudo. Ela se lembrou das histórias que ouvira sobre o tratamento cruel que os mais fracos recebiam em terras distantes. Seria este o destino daquele garoto?
"O que estou fazendo com você?" murmurou para si mesma, os olhos vagando pela escuridão ao redor. A voz de sua mãe ecoava em sua mente, repreendendo-a por hesitar, por pensar em algo tão tolo quanto salvar um humano. Ela recuou um passo, apertando os lábios. "Eu não sou uma salvadora," repetiu para si mesma, tentando acreditar em suas próprias palavras.
Kamaria respirou fundo, o ar frio da noite preenchendo seus pulmões enquanto a dor anunciava sua transformação iminente. A sensação era insuportável, como se cada escama de sua cauda fosse arrancada à força, perfurando sua carne ao se dissolver em pele humana. Um gemido escapou de seus lábios, mas ela o reprimiu. Sabia que não havia espaço para fraqueza.
Cada fibra de seu corpo parecia resistir à mudança, como se seu próprio ser estivesse lutando contra a decisão que ela estava tomando. "Por que estou fazendo isso?" pensou, enquanto o peso emocional da transformação se juntava à dor física. O que significava para ela deixar sua forma natural? Era como negar uma parte de si mesma, uma parte que era profundamente conectada ao mar, à água e à magia que ela havia aprendido a dominar desde tão jovem.
Enquanto as escamas prateadas deslizavam para revelar sua pele humana, Kamaria sentiu um vazio, como se estivesse deixando para trás não apenas sua forma, mas também seu senso de pertencimento. Ela não queria ser uma humana, não queria abandonar sua natureza de sereiana, mas, ao mesmo tempo, não podia ignorar o impulso de salvar a vida do menino.
"Isso não sou eu," sussurrou para si mesma, apertando os olhos enquanto suas pernas tomavam forma, finas e fracas em comparação com a poderosa cauda que costumava levá-la com graça pelas profundezas. A cada etapa da transformação, ela sentia como se estivesse se afastando de quem realmente era. A dor que percorria seu corpo era um reflexo do que sentia em seu coração. "Estou indo contra o que fui criada para ser."
Ela se levantou com dificuldade, seus músculos ainda tremendo com a recente transformação. A vulnerabilidade em seu novo corpo a deixava desconfortável, mas não havia tempo para hesitar. O menino precisava dela, e, de certa forma, ela precisava dessa escolha. Mesmo que doesse.
Quando a transformação finalmente terminou, Kamaria ficou ajoelhada na areia, ofegante. Sentia-se vulnerável naquela forma, sem sua cauda prateada, sem sua conexão direta com as águas. Mas não havia escolha. Com dificuldade, levantou-se e pegou um vestido branco de algodão que havia escondido entre as pedras para emergências. O tecido contrastava fortemente com sua pele escura, mas cobria suas pernas, agora humanas, da vista.
Ela olhou para o menino novamente deitado na ponta da areia, os pequenos pulmões ainda lutando para se estabilizar após o uso de sua magia. . Ele parecia menor do que imaginava. Seus membros eram tão frágeis, quase insignificantes contra a vastidão da terra ao redor. Kamaria se agachou ao lado dele, estudando suas feições delicadas e serenas. Mesmo inconsciente, ele parecia lutar para continuar respirando, o peito subindo e descendo com esforço.
Por um momento, ela pensou em deixá-lo. Em abandoná-lo ali, à mercê do destino. Seria a escolha mais fácil. Ela poderia voltar para a água, desaparecer nas profundezas, e ninguém saberia que ela esteve ali, que ela havia salvado um humano. "Ninguém me julgaria," pensou. "Ninguém esperaria que eu fizesse diferente." Porto Cantante estava a apenas algumas milhas de distância. Alguém o encontraria. Talvez. "Mas... e se ninguém o encontrar a tempo?" pensou, o aperto em seu peito crescendo. Antes que pudesse se conter, estendeu os braços e o pegou, cuidadosamente. Ele parecia ainda mais leve em seus braços do que na água, como um pequeno peixe ferido.
A criança abriu os olhos naquele momento, seus lábios trêmulos enquanto olhava para Kamaria com uma mistura de medo e confusão. Ela hesitou, os olhos dele pareciam buscar algo, talvez uma resposta, talvez apenas segurança.
“Você está bem?” ela perguntou suavemente, com um olhar de cautela. Mas o menino, tão pequeno e assustado, não conseguia responder. Em vez disso, ele se aninhou mais contra o peito dela, seus dedos trêmulos seguravam o tecido de seu vestido como se a única coisa que mantivesse o menino seguro fosse o contato com ela. Ele era tão pequeno, tão frágil. Como alguém tão vulnerável poderia sobreviver em um mundo tão cruel?
Enquanto esses pensamentos se agitavam em sua mente, algo mais profundo começou a emergir. Um sentimento de conexão, de responsabilidade. O menino, com seus olhos tristes e confusos, não representava apenas uma vida que ela havia salvo; ele representava algo maior. Ele era uma ruptura, uma chance de escapar do ciclo de violência e ódio que ela tinha presenciado por tanto tempo.
Seu coração apertou quando percebeu o que essa escolha realmente significava. "Eu não sou como eles," pensou, com uma determinação que nunca havia sentido antes. "Não posso ser como eles."
Kamaria olhou para o menino uma última vez. A decisão estava clara, mas não era fácil. Levantou-se, seus músculos humanos ainda fracos, e com cuidado pegou o pequeno corpo nos braços. Ele era leve como uma pena, mas o peso da responsabilidade sobre seus ombros era esmagador. Ao carregá-lo, sentiu que estava carregando mais do que apenas uma vida; estava carregando o fardo de sua própria escolha, a ruptura definitiva com as expectativas de sua família.
O menino se aconchegou mais perto de seu peito, como se soubesse que ela era a única coisa que o mantinha seguro naquele momento. Seus pequenos dedos se agarraram ao tecido de seu vestido, e ele murmurou algo inaudível, perdido em sua confusão e medo.
Kamaria fechou os olhos por um momento, sentindo a lua brilhar sobre eles. "Eu não deveria estar fazendo isso," disse para si mesma, mas no fundo ela sabia que essa era a única decisão que podia tomar. Salvá-lo significava se salvar também — de um futuro que ela não queria, de um destino que não escolheu.
Com o menino aninhado em seus braços, ela começou a caminhar em direção a Porto Cantante. A brisa da noite passava por eles, trazendo o cheiro da água e do mar, mas Kamaria sabia que não poderia voltar. Não ainda. O futuro agora era incerto, mas pela primeira vez em sua vida, ela estava em paz com sua escolha.
Ao longe, o rio Innis se estendia em silêncio, suas águas refletindo o brilho prateado da lua. O Innis fluía pelas terras dos sereianos, mas também corria para além, rumo ao continente humano, onde histórias diferentes se desenrolavam. Muitos diziam que o Innis não era apenas um rio — era uma conexão viva entre mundos, carregando consigo segredos e mistérios que transcendiam as fronteiras visíveis. Kamaria sempre sentira o poder daquele rio, como se as correntes soubessem de algo que ela ainda não compreendia.
Agora, enquanto caminhava em direção ao desconhecido, ela se perguntou se o rio estaria guiando seu caminho, levando-a para algo maior, algo que ultrapassava as águas conhecidas de seu mundo. O Innis, pensou, guardava mais do que suas águas mostravam à superfície. Talvez, como ela, ele também estivesse preso entre dois destinos — o conhecido e o inexplorado.
Comentários
Postar um comentário